Surplus - Resenha Crítica

O filme Surplus aborda, de forma mordaz e incisiva, os paradigmas da sociedade contemporânea. Erik Gandini, diretor do filme, nos proporciona um prisma externo à vida que levamos. Do ponto de vista cinematográfico, é característica impar do filme a maneira que nos são apresentadas as cenas: sons, imagens e repetições nos prendem a atenção e passam, com extrema precisão, a realidade do consumismo. Portanto, a ideia central do filme implica em questionamentos intrínsecos ao caráter humano. Todo, e qualquer, argumento concebido no filme, circunda os sistemas que a sociedade se organiza - ou tenta organizar-se. O documentário tem a pretensão de analisar nossa forma de vida, em relação ao consumo. O filme corrobora muitas vezes com Karl Marx, ainda que o socialismo seja, por ora, utópico. Críticas ferrenhas são lançadas ao capitalismo e às “riquezas” que este sistema gera. A desumanização do ser humano, as colossais diferenças sociais - enquanto uns poucos vivem com muito, outros muitos sobrevivem com muito pouco - o mito do “desenvolvimento sustentável” (já que somente alguns países são desenvolvidos e tanto lixo é produzido) e a transformação em produto das relações interpessoais são assuntos abordados e discutidos ao longo do filme.

Logo de início somos expostos às imagens das manifestações em Gênova. Em seguida o filósofo anarco primitivista, John Zerzan, nos surpreende com um peculiar – ou familiar - ponto de vista: de que vivemos em uma sociedade de demasiado, e desenfreado consumo. Nesta, preocupamo-nos somente com o desenvolvimento, o crescimento e a ambição por maior poder econômico. Outro questionamento de Zerzan, que nos faz refletir, é a apatia e alienação do homem moderno. Para ele, devemos pensar com criticidade sobre o consumo. Devemos abandonar a passividade latente e rebelarmo-nos ao sistema.

Além disso, o filósofo, seguindo a vertente existencialista de Nietzsche, incita-nos o pensamento sobre a real liberdade que temos para escolher determinado produto, mas não temos a escolha de não escolher. Ele defende uma metamorfose, uma reestruturação na maneira em que vivemos e transformemo-nos num homem primitivo, pois assim conseguiremos viver com o que temos e não com o que poderíamos ter. Tais argumentos assemelham-se à obra de José Saramago Ensaio Sobre a Cegueira, que vai além do consumismo, mas associa-o ao olhar, à nossa capacidade de ver. Ele afirma que o mundo vive numa era em que o visual é imprescindível, e somente com a perda dessa capacidade conseguiríamos viver em harmonia. De certa forma, para Saramago e para Zerzan estaríamos retrocedendo no tempo – já que sem nossa visão, nossa sociedade cairia em colapso - e assumindo a forma do homem primitivo.

Seria um equívoco afirmar que o filme possui um argumento “uno”. De maneira a complementar sua alegação principal, Erik Gandini nos leva a Cuba e Índia. O diretor nos apresenta outras facetas do capitalismo. A primeira, antagônica por natureza, nos introduz ao socialismo cubano. Desta forma, Erik reforça seu argumento anticapitalista, já que o socialismo só existe como alternativa, no quesito maneira de vida, como tentativa de fuga ao direcionamento e à sistematização capitalista. É comum na realidade cubana, talvez a realidade e nação menos capitalista do globo, a falta de produtos, alimentos, remédios, etc. Isso fica claro no filme na cena em que uma comerciante cubana apresenta a pasta de dente “Perla”, que não possui nenhuma marca específica, ela é conhecida somente como “Perla”. Ela nos alerta, involuntariamente, de que é possível viver num mundo sem as famosas “brands”. Relacionado a isso, podemos refletir sobre a forma que o capitalismo reestruturou nossos signos, significados e significâncias. Atribuímos valor, muitas vezes, a objetos sem valor algum.

Na Índia a realidade diverge completamente à que estamos habituados. A cena – que é passível de elogios – mostra o cotidiano, precário, dos trabalhadores do ancoradouro na Baía de Alang. Conhecido como o maior “cemitério de navios” do mundo, é para lá que a Europa envia seus Baleeiros e Petroleiros – que muitas vezes carregaram substâncias tóxicas e/ou radioativas - a fim de desmontá-los, já que o desmonte de navios na Índia custa aproximadamente 100 vezes menos do que na Europa. Tal situação nos lembra, uma vez mais, do lixo gerado pelo sistema. Outra questão inerente a essa cena é o conceito de mais-valia. Evidente que os trabalhadores do filme não conhecem tal conceito. Fica claro que as grandes empresas e companhias também não estão familiarizadas com o conceito. Isso demonstra o valor, e a crescente desvalorização, do ser humano.

Ao longo do filme destacam-se algumas cenas – também elogiáveis - que retratam com exatidão, o que as propagandas, companhias, empresas e nações nos vendem, no sentido ideológico, todos os dias. O discurso de George W. Bush, ex-presidente norte-americano, demonstra o descontrole para com o consumo:

“Não podemos permitir que o terrorismo faça com que nós, com que as pessoas não consumam mais”.

É impressionante a importância que tem esse discurso para a compreensão dos ataques ao Word Trade Center – coração, distintivo, insígnia e símbolo do consumismo mundial - em 11 de setembro de 2001. Isso demonstra que tanto os terroristas quanto os norte-americanos sabiam do teor dos atentados. O ato terrorista representou muito mais do que a morte de 2.996 pessoas, do que uma repreensão às ações norte-americanas perante o globo. Os ataques representaram uma guerra aberta ao consumismo, uma guerra à prosperidade de uns em detrimento dos outros. A resposta imediata, intitulada “Doutrina Bush”, foi a forma, mascarada, de manter e assegurar de que o capitalismo continuasse regrando nossas vidas. A guerra direta contra Iraque, Afeganistão – guerra esta, que evidenciou o desdém para com a vida de centenas de milhares de soldados - foi mecanismo para encorajar os consumidores a consumirem novamente.

Outra cena interessante é o discurso do showman e diretor da Microsoft, Andrew Baumann, nela Baumann faz em uma apresentação de novos produtos da marca. Seu caráter eufórico, descontrolado e entusiasmado reflete a maneira como consumimos. “I Love this company”, é a frase que reverbera e se repete ao longo da cena, enquanto imagens opostas ao conceito apresentado são exibidas. Vale a pena ressaltar o paradoxo Bill Gates: computadores aproximarão as pessoas – o que, irrefutavelmente e cada vez mais, não acontece.

Em contrapartida, o longa-metragem, quase ao seu fim, nos conta a história de um jovem milionário sueco, que tão novo possui um patrimônio de 18 milhões de dólares. O argumento do documentário nessa cena é confuso. De acordo com o filme, a infelicidade do rapaz sueco é causada pelo excesso de bens materiais e a falta daquelas “coisas simples da vida”. Isso nos remete ao seguinte pensamento: dinheiro não nos traz felicidade. Contudo, o fato do rapaz valorizar o anonimato e a não ostentação de bens, critica, com apelo emocional, o sistema capitalista. Nessa cena faltou algum posicionamento de Erik Gandini.

Finalmente, a conclusão. No quesito importância, o filme serve-nos de maneira a sanar – ou instigar – duvidas lançadas sobre o capitalismo. Desta reflexão, tenho certeza que não só eu, mas num âmbito universal, aqueles que assistem ao filme sentem-se desafiados a encontrar uma alternativa viável que possa reger as formas como a humanidade se organiza.

Hugo Aruom
Enviado por Hugo Aruom em 13/09/2013
Reeditado em 13/09/2013
Código do texto: T4480015
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