Estômago: um cinéfilo de barriga cheia.
A expressão “Pela boca se conquista o coração de um homem” nunca fez tanto sentido e ficou evidenciada quanto no filme “Estômago”. Inspirado no conto: “Presos pelo Estômago”, do livro “Pólvora, Gorgonzola e Alecrim”, de Lusa Silvestre, “Estômago” nos remete a dois ambientes distintos, mas com características similares e a mesma finalidade: satisfação gastronômica.
O filme conta a história de um imigrante que tenta a sorte em uma metrópole, Raimundo Nonato, que ao chegar à cidade grande encontra-se perdido, sem rumo e principalmente com fome. Após vagar sem direção, Nonato para em uma lanchonete e com fome pede duas coxinhas. Sem dinheiro, o personagem é obrigado à lavar os pratos e à cozinhar para saldar a dívida. A partir desse momento sua vida se transforma e para deleite de quem acompanha a narrativa cada fato, cada acontecimento vai encaixando-se e formando a história, traçando o perfil de cada personagem. Raimundo descobre sua aptidão para a cozinha. Aceita o trabalho na lanchonete em troca de comida e moradia, aprende a fazer quitutes, como pastéis e coxinhas. Sua vida muda, como muda a frequência do local, que aumenta e repercute. Tanto sucesso o leva a trabalhar como assistente de cozinha com Giovanni, o dono de um conhecido restaurante italiano da região. Nesse novo trabalho Raimundo alia seu conhecimento prático com aulas teóricas, filosóficas e artísticas sobre o sublime mundo da gastronomia, onde se compara um prato bem elaborado a uma obra de Picasso. A vida de Raimundo Nonato muda completamente, com novas roupas, um novo lar e principalmente uma identidade. Se não uma nova identidade, pelo menos um perfil diferente do moço acanhado que chega à capital. Raimundo se sente completo quando conhece Iria, uma prostitua glutona que altera seu caminho uns 180º.
A partir dessa narrativa básica a história desenrola-se com dois ambientes principais: a cozinha da cantina italiana e a cela de uma penitenciária. Há a todo o momento uma ponte entre esses dois locais, com as características de cada um, os homens que os habitam, além das necessidades diferentes de sobrevivência em cada ambiente. A relação entre poder e gastronomia, vista como fábula, prende tanto a quem assiste que supor uma possível veracidade não é uma das tarefas mais difíceis. Aliás, essa relação é tão bem costurada que ela vai se construindo com naturalidade sem nenhuma sobreposição à proposta que o roteiro traz.
O filme, que começa justamente com a chegada de Raimundo Nonato à São Paulo poderia se prender a mais uma narrativa do êxodo que foi tão corriqueiro no Brasil. Mas como não é o objetivo central, ele apenas passa pelo fato, inclusive sem alardes, sem indicar a origem do retirante. Supõe-se nordestino por conta do sotaque, talvez sua visão de mundo ou apelo religioso sem tornar-se uma história bairrista.
Em ritmo proseado com mistos de aventura, romance, comédia e drama, a narrativa vai construindo os fatos, delineando personagens, pensamentos até atingir seu clímax. A fotografia e a trilha sonora têm fundamental papel de envolvimento. E como toda boa história, mesmo revelando um final previsível, cria uma relação de estreitamento com Nonato e sua angústia com o desenrolar final. É o que seduz, faz pensar e torcer desde o começo pelo protagonista. Com esses ares de fábula, fica como moral a diversidade, através de um humor inteligente bem empregado nesse drama ou, um drama bem construído com pitadas de comédia. Fica também a associação da urbis com a migração, preconceitos, prostituição, realidade carcerária e o instinto humano. Um filme onde os cinco sentidos estão à flor da pele, mortos à fome de um bom texto, uma boa imagem. Não deve ser visto, e sim degustado.