“Lincoln”(Lincoln)
“Lincoln”(Lincoln)
Toda noção que uma cultura mediana tinha (e irradiava) sobre o sul que escraviza e o norte que industrializa cai por terra diante da indagação: como é possível ser uma democracia com seres humanos escravizados?
“Lincoln”, o filme, parte dessa premissa. Assim, não se trata de uma mera querela entre mão de obra versus maquinário em prol do capital. Trata-se de uma questão de humanidade. Acho que essa palavra se encaixa melhor no contexto do que dizer “humanitária”. A palavra humanidade amplia a discussão.
O Abraham Lincoln histórico funde-se em diferentes lay-outs na presente obra. A argamassa vem do livro “Team of Rivals: The Genius of Abraham Lincoln”, de Doris Kearns Goodwin. A sua vivência na tela é regida por outro gênio, Steven Spielberg. Suas falas foram moduladas (a partir da argamassa) pelo roteirista Tony Kushner (vide “Munique”). A fusão total dos layouts acontece na performance de Daniel Day-Lewis.
Spielberg conta que pegou o roteiro de 550 páginas e de imediato pensou: isso jamais será um filme. Quem sabe uma minissérie da HBO...
O que realmente salta aos olhos dos dispostos a um entretenimento de alto conteúdo é o naipe dos raciocínios e desafios expostos nesta fração da vida de Lincoln. O filme abrange seus últimos meses de vida, dá pouquíssima nota ao massacre da secessão (600.000 mortos), visualmente dizendo, e foca a atenção sobre a 13ª Emenda.
A América era uma democracia com 87 anos de existência. Havia o risco de a guerra acabar e a escravidão continuar. Impressionante o que esses caras levaram a sério esse jogo – a democracia, desde o começo.
Repare nessa cadeia de pensamentos. Lincoln está com o seu gabinete e começa a falar, ainda que, pela maneira como ocorre, mais parece uma reflexão em voz alta:
“Eu decidi que a Constituição me dá poderes de guerra, mas ninguém sabe direito que poderes são esses. Alguns dizem que não existem, não sei. Eu decidi que preciso deles para manter meu juramento à Constituição. Então decidi que poderia tirar os escravos dos rebeldes como propriedade conquistada na guerra. Isso gera suspeitas de que eu concordo que escravos são propriedade. Não concordo nem nunca concordei. Entretanto, nesse caso, chamar de propriedade ou contrabando foi um instrumento e eu me utilizei dele. Agora é que fica complicado. Usei a lei que permite a apreensão de propriedades numa guerra que se aplica só a governos e cidadãos de nações hostis. O sul não é uma nação por isso não negocio com eles. Se os negros são propriedade perante a lei, tenho o direito de tomá-los, insistindo que os sulistas são só rebeldes e não cidadãos de um país hostil? Para piorar eu digo que não são os estados do sul em rebelião, mas os rebeldes que vivem nesses estados, cujas leis continuam em vigor. Como são as leis que determinam se os negros podem ser vendidos como escravos ou propriedade, a lei federal nada tem a dizer. Negros nos estados são escravos, portanto propriedade, logo meus poderes de guerra me permitem fazer o confisco. Mas, se respeito as leis estaduais, como pude alforriá-los com a proclamação? E se cancelasse as leis estaduais? Senti que a guerra exigia o cancelamento. Meu juramento exigia. Há dois anos eu emancipei essas pessoas. De hoje em diante para sempre livres. E se os tribunais decidirem que não tinha essa autoridade?
Se não houver uma emenda de abolição depois da guerra e eu não puder mais usar a guerra para ignorar os tribunais, as pessoas que libertei vão voltar para a escravidão? É por isso que quero aprovar a 13ª Emenda na câmera e acabar com essa história de escravidão de uma vez por todas.”
Daniel Michael Blake Day-Lewis nasceu em Londres, 1957, (filho de um poeta e de uma atriz), este é seu terceiro Oscar e quem o viu em “Sangue Negro” (segundo Oscar, 2007) apenas se pergunta: como é possível? Como é possível tamanha metamorfose, tamanho aperfeiçoamento?
Dez indicações e duas estatuetas e, apesar disso, a obra não faz prisioneiros. Basicamente as opiniões se dividem entre o "detestei" e o "gostei bastante".
Nesta resenha diz-se cinemão clássico com os seguintes predicados: estro, invenção, cadência e colorido. Neste último, que o digam os ganhadores do Oscar de Melhor Desenho de Produção, Jim Erickson e Rick Carter.
David Strathairn, Sally Field, James Spader, Hal Holbrook, Tommy Lee Jones, etc., confirmam com suas presenças a firmeza do Todo.
Lá pelas tantas Lincoln faz um micro discurso hasteando uma bandeira. Ele diz simplesmente: no momento meu dever é hasteá-la. Cabe a vocês mantê-la lá em cima.
“Lincoln”(Lincoln)
Toda noção que uma cultura mediana tinha (e irradiava) sobre o sul que escraviza e o norte que industrializa cai por terra diante da indagação: como é possível ser uma democracia com seres humanos escravizados?
“Lincoln”, o filme, parte dessa premissa. Assim, não se trata de uma mera querela entre mão de obra versus maquinário em prol do capital. Trata-se de uma questão de humanidade. Acho que essa palavra se encaixa melhor no contexto do que dizer “humanitária”. A palavra humanidade amplia a discussão.
O Abraham Lincoln histórico funde-se em diferentes lay-outs na presente obra. A argamassa vem do livro “Team of Rivals: The Genius of Abraham Lincoln”, de Doris Kearns Goodwin. A sua vivência na tela é regida por outro gênio, Steven Spielberg. Suas falas foram moduladas (a partir da argamassa) pelo roteirista Tony Kushner (vide “Munique”). A fusão total dos layouts acontece na performance de Daniel Day-Lewis.
Spielberg conta que pegou o roteiro de 550 páginas e de imediato pensou: isso jamais será um filme. Quem sabe uma minissérie da HBO...
O que realmente salta aos olhos dos dispostos a um entretenimento de alto conteúdo é o naipe dos raciocínios e desafios expostos nesta fração da vida de Lincoln. O filme abrange seus últimos meses de vida, dá pouquíssima nota ao massacre da secessão (600.000 mortos), visualmente dizendo, e foca a atenção sobre a 13ª Emenda.
A América era uma democracia com 87 anos de existência. Havia o risco de a guerra acabar e a escravidão continuar. Impressionante o que esses caras levaram a sério esse jogo – a democracia, desde o começo.
Repare nessa cadeia de pensamentos. Lincoln está com o seu gabinete e começa a falar, ainda que, pela maneira como ocorre, mais parece uma reflexão em voz alta:
“Eu decidi que a Constituição me dá poderes de guerra, mas ninguém sabe direito que poderes são esses. Alguns dizem que não existem, não sei. Eu decidi que preciso deles para manter meu juramento à Constituição. Então decidi que poderia tirar os escravos dos rebeldes como propriedade conquistada na guerra. Isso gera suspeitas de que eu concordo que escravos são propriedade. Não concordo nem nunca concordei. Entretanto, nesse caso, chamar de propriedade ou contrabando foi um instrumento e eu me utilizei dele. Agora é que fica complicado. Usei a lei que permite a apreensão de propriedades numa guerra que se aplica só a governos e cidadãos de nações hostis. O sul não é uma nação por isso não negocio com eles. Se os negros são propriedade perante a lei, tenho o direito de tomá-los, insistindo que os sulistas são só rebeldes e não cidadãos de um país hostil? Para piorar eu digo que não são os estados do sul em rebelião, mas os rebeldes que vivem nesses estados, cujas leis continuam em vigor. Como são as leis que determinam se os negros podem ser vendidos como escravos ou propriedade, a lei federal nada tem a dizer. Negros nos estados são escravos, portanto propriedade, logo meus poderes de guerra me permitem fazer o confisco. Mas, se respeito as leis estaduais, como pude alforriá-los com a proclamação? E se cancelasse as leis estaduais? Senti que a guerra exigia o cancelamento. Meu juramento exigia. Há dois anos eu emancipei essas pessoas. De hoje em diante para sempre livres. E se os tribunais decidirem que não tinha essa autoridade?
Se não houver uma emenda de abolição depois da guerra e eu não puder mais usar a guerra para ignorar os tribunais, as pessoas que libertei vão voltar para a escravidão? É por isso que quero aprovar a 13ª Emenda na câmera e acabar com essa história de escravidão de uma vez por todas.”
Daniel Michael Blake Day-Lewis nasceu em Londres, 1957, (filho de um poeta e de uma atriz), este é seu terceiro Oscar e quem o viu em “Sangue Negro” (segundo Oscar, 2007) apenas se pergunta: como é possível? Como é possível tamanha metamorfose, tamanho aperfeiçoamento?
Dez indicações e duas estatuetas e, apesar disso, a obra não faz prisioneiros. Basicamente as opiniões se dividem entre o "detestei" e o "gostei bastante".
Nesta resenha diz-se cinemão clássico com os seguintes predicados: estro, invenção, cadência e colorido. Neste último, que o digam os ganhadores do Oscar de Melhor Desenho de Produção, Jim Erickson e Rick Carter.
David Strathairn, Sally Field, James Spader, Hal Holbrook, Tommy Lee Jones, etc., confirmam com suas presenças a firmeza do Todo.
Lá pelas tantas Lincoln faz um micro discurso hasteando uma bandeira. Ele diz simplesmente: no momento meu dever é hasteá-la. Cabe a vocês mantê-la lá em cima.