A Caça (Análise e Crítica)
Como qualquer obra aberta, a leitura de um filme não está em que o seu diretor pretende transmitir, mas sim naquilo que o receptor – o telespectador neste caso – consegue captar, levar para o seu mundo, dar a isso sentido(s) próprio(s), para assim poder interpretar. Essa “morte do diretor” nunca me foi tão evidente como em “A Caça”, longa de origem dinamarquesa que estreou em pequeno circuito no Brasil neste final de semana.
A narrativa se concentra em Lucas (Mads Mikkelsen), homem solitário, professor querido em uma escola infantil, que luta para obter mais tempo com seu filho, mas que de maneira aparentemente injusta é acusado de pedofilia e abuso sexual por uma das alunas, Klara (Annika Wedderkoop), filha do seu melhor amigo Theo (Thomas Bo Larsen). Mesmo sem provas concretas, além do depoimento de uma menina de cinco anos que a todo momento é descrita como dona de uma imaginação muito fértil, ele é hostilizado por essa pequena comunidade interiorana e acaba se fechando em seu próprio mundo.
Dirigido e co-roteirizado por Thomas Vinterberg, o longa acerta em tirar o foco da possível culpa quando decide discutir a fragilidade nas relações de amizade e confiança. Para tal, usa-se da força destruidora que um simples boato pode causar na vida de uma pessoa. Além de perder o emprego e a confiança de toda uma cidade que o dizia conhecer há anos, ele perde acima de tudo sua dignidade. Contando apenas com o apoio do seu filho e de seu compadre (que em alguns momentos parece titubear da inocência do amigo), sua casa é apedrejada e sua cachorra Fanny, única companheira, é assassinada como represália.
Além disso, propõe debater essa tendência atual de se acreditar que as crianças são incapazes de mentir, vingar-se e crer de tal maneira em suas próprias fantasias que acabam as tornando reais. Baseando-se em uma psicologia vaga e amadora, todos os pais da cidade acusam o professor de molestar seus filhos apenas porque estes tinham pesadelos (quais crianças não os têm, afinal de contas?). Faz-se uma profunda reflexão também sobre o poder negativo da palavra e da fabulação: o como que, da noite para o dia, uma mentira se espalha com tanta força a ponto de se transformar em realidade e senso comum.
Em entrevistas de divulgação do filme, Vinterberg afirma que seu protagonista é inocente e que ele, o diretor, deixa isso bem claro na película. De fato, o telespectador sabe, por exemplo, como a pequena Klara conseguiu vislumbrar a imagem de um pênis ereto (viu em uma revista pornográfica do irmão adolescente) e o motivo de sua torpe acusação (ela acaba se apaixonando pelo professor mas logicamente não é correspondida). Entretanto, voltando ao que foi dito no primeiro parágrafo, o longa não deixa de ser ambíguo em alguns momentos.
Por exemplo, a cena em que Lucas limpa um de seus alunos, que havia terminado de fazer suas necessidades. Estaria lá à toa? Lógico que não: mostra as possibilidades que ele teria de contato íntimo com as crianças. Ao final do filme, quando a cidade parece esquecer o mal-entendido e ele pega Klara no colo, seu olhar não parece ser tão inocente: para se proteger, não seria mais coerente deixar de manter contato tão íntimo com a garota? Ou ele não pôde resistir ao seu verdadeiro desejo? Ou então, em vista do já ocorrido, ele estaria livre para voltar a fazer suas práticas, já que agora contaria com o argumento de um episódio distorcido? Ou seria de fato inocente e tal atitude poderia ser uma forma de dizer que já havia perdoado?
Além da direção de qualidade, as interpretações são o que marcam a excelência do filme. Todos os atores, sem exceção, são verdadeiros aos seus personagens e se entregam totalmente à história. Ganhador do Palma de Ouro no ano passado justamente por esta interpretação, Mikkelsen coloca em seu Lucas uma passividade que irrita, fragiliza e – principalmente – questiona. O que você faria se acusado injustamente de algo tão bárbaro? O personagem simplesmente esperou sentado pela sua absolvição. A psicologia humana é algo muito complexo: estaria ele ciente de sua inocência? Ou as agressões sofridas e nem sempre contestadas seriam uma forma de autopunição por ele próprio se considerar doente e monstro? Por escapar das perguntas ou nunca respondê-las de forma clara, ficamos na incerteza. E as cenas do supermercado e da igreja, as melhores sequências da produção, confundem mais que esclarecem.
Muitos criticaram o final do filme, dizendo que este seria o seu único ponto fraco. A meu ver, foi um desfecho magistral. O título não é apenas metafórico. Lucas é um caçador de cervos e que, por ironia do destino, acaba sendo a caça de uma comunidade (e/ou até de si mesmo?) Com a situação já resolvida perante a cidade, um grupo de amigos decide caçar cervos junto com ele, que inicia seu filho Marcus (Lasse Fogelstrom) na prática. Num clima de mistério, um tiro passa raspando pelo personagem. Neste momento somos guiados pela óptica de Lucas, que não vê esse suposto assassino por conta da claridade do sol. Quem poderia ser: alguém que não se convenceu de sua inocência? Esta pessoa estaria entre seus amigos de caça? Ou seria uma vítima? Seu próprio filho, que parece não ligar para garotas, teria sido uma vítima e se lembrado de alguma coisa durante o estopim dos boatos? O que sobram são simplesmente as perguntas...
Com uma fotografia bastante intensa, “A Caça” hipnotiza o telespectador do início ao fim, não o fazendo sequer piscar. É um filme inteligente, por ser ambíguo em sua objetividade e conseguir manter este aspecto da primeira à última cena. Provoca. Uma boa pedida para amantes de um cinema de qualidade e apreciadores de obras que se situam fora do circuito comercial e que, justamente por isso, não recebem o valor que merecem. Uma obra-prima!
Nota: 9,0.