Lincoln (Análise e Crítica)
Desvalorizada por olhos nem vezes tão atentos, a precisão fotográfica pode conter em si mesma a alma do filme e a mensagem indizível que o seu diretor pretende passar. É o que acontece em “Lincoln”, o mais recente longa-metragem dirigido por Steven Spielberg e indicado a nada menos que 12 estatuetas do Oscar, incluindo melhor filme, diretor e também fotografia, assinada por Janusz Kaminski.
Como uma pintura triste e misteriosa, quase toda a obra é tingida de um cinza azulado, e por razões óbvias. A trama se passa nos bastidores da política norte-americana, em 1865, quando o então presidente Abraham Lincoln argumentava a favor do fim da escravidão no país, o que deliberou a sangrenta Guerra Civil da Secessão, que se estima ter ceifado aproximadamente um milhão de vidas. O tom cinza transpassa as incertezas e indefinições acerca do futuro da soberana nação, enquanto as nuances azuladas realçam a áurea do 16º presidente estadunidense, aparentemente muito calmo e convicto de suas idealizações e feitos. Essencialmente paradoxal, esse jogo visual enriquece favoravelmente a produção, que a todo o momento parece querer contrapor o estado emergencial de uma nação com a placidez de seu comandante.
Nesse contexto, a trilha sonora de John Williams não dialoga muito com tal intenção, mas não deixa de ser coerente. Como se esperava, a produção de arte esbanja sofisticação e sutileza, e por isso as canções do maestro tendem a seguir muito cordiais e discretas. O problema é que as mesmas não retratam a atmosfera nebulosa pela qual a sociedade passava naquele momento. Ou seja, cortejou-se a nuance azulada da película, porém se esqueceu de reverenciar o tom cinza, que é justamente o mais importante, já que se trata de um filme político, acima de tudo. Elegante, embora opaca.
Quanto à direção, Spielberg propositalmente se mostra frio, no sentido de prender o espectador, e acaba por oferecer um trabalho um pouco cansativo, por alguns motivos. São 150 minutos de projeção em sua maioria apresentados por imagens filmadas em um ritmo demasiado lento. É claro que isso condiz com o fato de a fita se centralizar na vida do presidente, porém naquele momento e naquele contexto o presidente e a sua nação se entrelaçavam como se fossem apenas um. Caso contrário, não se teria construído nele a figura de herói.
Outro motivo está no fato de a guerra em si não ter sido visualmente explorada. Todos sabemos que Lincoln esteve ao lado de seus soldados e visitou inclusive campos de concentração, sendo popularizado por esses atos. Faltou mostrar a consequência de todas aquelas discussões. Em “Cavalo de Guerra”, seu polêmico trabalho anterior, Spielberg também preferiu dar ênfase ao humano ao bélico, mas acertou nas lindas sequências de batalha da Primeira Guerra Mundial. Aliás, no meu simples ver, este é o grande problema das cinebiografias sobre figuras presidenciais: enfatizar demasiadamente os bastidores da política e olvidar o que é externo a ela. No caso de “Lincoln”, creio que essa regra foi por demais prejudicial à grandiosidade que a obra poderia ter sido.
Só para manter o padrão, não poderia não falar sobre o desempenho extraordinário dos atores. Indicado ao Oscar de melhor ator pelo personagem, Daniel Day Lewis enche nossos olhos com uma interpretação impecável. Assim como em outras atuações marcantes (“Sangue Negro”, “Gangues de Nova Iorque” etc), o ator empresta sua postura, sua voz, seus gestos e seu olhar ao personagem. Mérito também de Spielberg, lógico. A maquiagem realçou sua semelhança física com o presidente e resultou em uma das mais tocantes caracterizações já vistas nos últimos anos. Extremamente emocionante.
Quão bons quanto Lewis, estão outros dois monstros: Tommy Lee Jones e Sally Field, ambos igualmente indicados ao Oscar nas categorias ator e atriz coadjuvantes. Enquanto a ele cabe o papel de um político calado mas absolutamente centrado, a ela cabe a difícil tarefa de viver a primeira-dama Mary Todd, uma mulher que sente orgulho do marido e que ao mesmo tempo gostaria de levar uma vida normal, e por isso se remoía com as saudades de uma história pessoal que nunca protagonizara, o que a levou, ao final da vida, a uma grande depressão.
Não são poucas as considerações que devem ser observadas sobre “Lincoln”. Sobretudo calcada em longos diálogos – ora cansativos pelo teor político –, a obra preza em ser um grande rigor estético, que sem dúvida quase o é. Mas não inova, esse é o seu ponto fraco.
Mesmo assim, é alta a probabilidade de que ganhe o prêmio de melhor filme, visto o gosto da Academia em premiar trabalhos recentes que focam questões políticas (“Guerra ao Terror” e “O Discurso do Rei”), mas muitos são aqueles que pensam que o filme não mereça tanto assim. Entretanto, em um ano de posse presidencial como este, não é segredo para ninguém que isso pode pesar numa possível decisão a favor. Sem contar que, sendo um filme americano feito quase exclusivamente para americanos, a tendência egocêntrica característica também não pode ser descartada.
Nota: 7,5.