Django Livre (Análise e crítica)
Depois de três anos de espera, finalmente chegou aos cinemas brasileiros o tão esperado “Django Livre” (originalmente “Django Unchained”), o novo trabalho dirigido e roteirizado por Quentin Tarantino, que tem em suas obras um estilo muito peculiar por dosar humor inteligente com cenas de extrema violência. Bem, não poderíamos esperar dele outra coisa em seu recente longa...
Numa salada de vários gêneros cinematográficos, narram-se as peripécias do escravo Django Freeman (Jamie Foxx), que, com o propósito de reaver sua mulher Brunhilde (Kerry Washington), alia-se ao matador por recompensa alemão Dr. King Schultz (Christoph Waltz) numa caçada contra mal-feitores e senhores de escravos. Trata-se de uma homenagem aos filmes western spaghetti, gênero muito apreciado pelo diretor, e com um diferencial: o caubói em questão agora é negro. Ao escrever o roteiro, Tarantino foi perspicaz por optar em não fazer um filme essencialmente político. Ambientado dois anos antes da Guerra de Secessão e ainda em um estado do sul, que era tradicionalmente escravocrata, seria muito batido falar sobre um negro fugido que luta contra o mundo pelos seus direitos como cidadão. Em vez disso, tornou-se mais verídico inserir a política dentro do próprio social e das relações cotidianas.
São ganhos, assim, muitos elementos valiosos que enriquecem a trama, como a exclusão do negro à cultura, conforme demonstrado em várias ocasiões pelo linguajar mais coloquial dos escravos ou simplesmente pelo fato de não saberem ler e sequer o significado de algumas palavras corriqueiras. Nesse ínterim, dois momentos podem ser destacados. Apesar da violência crua e sanguinária – dificilmente gratuita – já bastante característica de seus filmes, Tarantino sabe equilibrar essa pertinente com humor elegante. Como resultado, temos a incrível sequência daquilo que seria as primeiras organizações de motim da pré Ku Klux Klan. Até hoje temido pelo alto teor de violência empregada em suas ações, o grupo é aqui ridicularizado por conta de um “dilema” fútil e hilário: usar ou não os famosos sacos brancos na cabeça, visto que os furinhos mal-feitos os impossibilitam de enxergar? Isso dá leveza à história, que não deixa de abordar algo importante, e mesmo assim consegue levar o espectador às gargalhadas. Todo roteirista calibrado sabe, afinal, que uma boa crítica se faz através de situações inesperadas pelo espectador; fazendo-os rir, então, melhor fica o resultado.
O segundo momento está no personagem Stephen, vivido brilhantemente por Samuel L. Jackson. Em algumas resenhas, sua performance foi menosprezada por alguns e dita como caricata. Para mim, é o melhor em cena. A maquiagem e o trabalho de corpo e voz do ator deram ao papel o destaque necessário para fazer o público pensar sobre a tênue fronteira entre lealdade e abnegação. Negro, trai a sua própria etnia a favor dos senhores brancos que lhe dão uma de suas propriedades para administrar. Vê os seus semelhantes como inferiores e se praz quando os faz sofrer os mais severos castigos possíveis. É através dele que podemos associar nos dias de hoje, por exemplo, os diversos homens-bomba que abdicam de suas vidas por uma causa que nem sempre são deles, embora se sintam fazendo parte da mesma. Onde termina a lealdade e se cria uma fé tão cega, a ponto de a própria pessoa se trair por ter aquilo como verdade?
Falando em atores, um elenco escolhido a dedos criteriosos a fim de promover interpretações impecáveis. Waltz, assim como em “Bastardos Inglórios”, está perfeito como o astuto e retórico Dr. Schultz, responsável pelo viés cômico do filme, sempre com tiradas e gestos próprios e imbatíveis. Leonardo DiCaprio, como o cruel senhor de escravos Calvie Candie, pode se orgulhar desta excelente performance, uma das melhores de suas carreiras. Jamie Foxx não surpreende tanto, mas dá dignidade ao personagem, e realmente são muito engraçadas as tomadas em que ele brinca com alguns clichês básicos de filmes de ação, como a retirada do revolver à la James Bond e a caminhada “sensual” em câmera lenta enquanto um cenário atrás vai literalmente pelos ares.
Ademais, toda a equipe técnica garante à película um espetáculo digno de uma grande produção hollywoodiana. E o que mais salta aos olhos são os cuidados do pessoal da direção de arte, principalmente com os detalhes bem mínimos que podemos observar nos cenários, incluindo uma real fazenda de escravos do século XIX. Sem nos darmos conta, somos talentosamente abduzidos ao Mississippi daquela época, tamanho realismo visto na tela. Em relação aos ouvidos, uma eclética trilha sonora que preenche cada momento com precisão, variando do hip hop urbano ao instrumental clássico (passando, obviamente, pelo country). Um verdadeiro deleite.
Fico me perguntando o que possa ter faltado em “Django Livre”. Talvez os trailers não tenham sido tão honestos, dando ao filme a ideia de que se tratasse de um thriller de ação ininterrupta, quando não. Talvez o roteiro também não seja tão inovador a ponto de se basear em um dos mais meros clichês, que é o (anti-)herói mover céus e terras para reaver a mulher que ele ama, e ainda no final conseguir. Sim, talvez. Mas diverte, emociona, faz refletir, cria um contexto coerente, tem humor inteligente e consegue – mesmo com 2h40min de duração – prender o telespectador. A linguagem de Tarantino continua lá, é exatamente a mesma. Mas o fato é que ele é tão bom que até se repetindo consegue ser autêntico. Seu talento reside em transformar a repetição em algo novo. Por isso é talento, não é para qualquer um.
Pensando nisso, não sei por quê, me veio a figura de Tim Burton à memória. Um maravilhoso diretor, mas que está trilhando justamente o caminho inverso: deixando o talento se diluir na pura repetição. Oh, mestre das sombras, que a luz de Tarantino brilhe e influencie a vossa mais profunda escuridão...
Nota: 9,0.