Intocáveis
Eu e minha mãe temos a tradição de aos domingos tomar um café na livraria e depois ver um filme. Mas hoje falei para ela, “Mãe, não tem nada passado no shopping daqui de perto. A gente vai ter que ir para um mais longe.” Ela perguntou, “Nem ‘Os intocáveis’?”. Exclui esta opção pois ela havia o visto dois dias antes. Pelo visto topava vê-lo novamente. Bom sinal.
O filme começa com dois homens lado a lado em um potente carro, um negro (presumivelmente o motorista) e um branco, (presumivelmente o chefe rico). Estão presos no estacionamento até que o motorista (Driss) decide, com a anuência do chefe (Phillipe) arrancar e sair costurando pelo trânsito a uma altíssima velocidade. A polícia logo percebe os infratores e os persegue. Driss aposta que a despistará a polícia – e no fim de um túnel perde a aposta. A polícia os cerca, arrancam Driss do carro e o algemam. Driss diz que seu companheiro não pode sair, que é um deficiente que está tendo um ataque cardíaco. Um dos vários policiais abre a porta e vê o senhor ofegante e respirando. Pois bem, de que se trata este começo de filme? Que filme é este que – segundo a mídia é o filme francês mais assistido de todos os tempos? Que filme é este que teve na frança mais resposta do público do que o excelente ‘Maravilhoso Destino de Amelie Poulain’ ? Este começo apresenta Driss como um homem ousado, imprudente, inconsequente e fanfarrão. Alguém que não perde o jogo de cintura mesmo estando prestes a ser preso. Também apresenta Phillipe, mostra que mais do que o chefe ele é um amigo de Driss. Mostra também que mesmo sendo tetraplégico Phillipe tem poder, tem ação, tem protagonismo suficiente para enganar os guardas se fingindo tetraplégico.
Como é recorrente atualmente ‘Intocáveis’ começa com o fim da história. O começo da história é outro, com menos ação. Mais ordinário, mas mais provocante: Na sala de uma mansão um monte de homens brancos bem vestidos de maneira formal e um negro vestido casualmente esperam sua vez em uma entrevista de emprego. Os candidatos, um após o outro apresentam suas credenciais: suas referências e seus empregos anteriores. Todos muito decentes. Nisso o roteiro e a direção tiveram muito mérito: Conseguiram colocar os melhores currículos e intenções como absolutamente desinteressantes. Assim o filme mostra o que mais tarde estará na fala de Phillipe. Não é ser tratado com todo o cuidado, sempre sendo alvo de pena e piedade que Phillipe quer. De certa forma a misericórdia lhe rouba um pouco de dignidade. De repente Driss invade o quarto e, furando a fila, diz que é sua vez. A entrevista se dá abruptamente e todas as perguntas são respondidas descabidamente. Driss não tinha o menor medo de não ser escolhido para o trabalho, na verdade nem tinha a menor esperança de ser chamado. Veio apenas trazer um documento que prova que ele foi para a entrevista . Deste documento depende seu seguro desemprego.
Este é o ponto nevrálgico sobre o qual gira o filme: Phillipe quer ser tratado com toda a dignidade e respeito que sua auto estima demanda. Ironicamente encontra isto em Driss, alguém culturalmente muito diferente que em diversos momentos é grosso, faz piadas de mau gosto e – deste modo – mostra que não se compadece com a condição de seu chefe. O filme bate muito nesta tecla. Em um exemplo claro, Driss vai cortar a barba de Phillipe. Daí faz diversos cortes muito estranhos. Transformando Phillipe hora em um motoqueiro digno de uma Harley Davison hora em Hitler.
O filme de fato é emocionante. Confesso que no fim fiquei com um baita nó na garganta. O tema da amizade sempre me tocou muito mais do que os temas mais batidos, o romance e a salvação do mundo. Nisto o filme me lembrou muito ‘Conduzindo Miss Daisy’ – o filme em que mais chorei na minha vida, diga-se de passagem. Esta ironia, as piadas de mau gosto que são a mostra de que Driss trata Phillipe como todo ser humano deve ser tratado, este estranhamento cultural, certamente é o ponto forte do filme. É até cômico de tão exagerado – o que arranca risos do público. Este ponto é também o defeito do filme. Pois a caricaturização pinta Driss reforça o estigma do negro como alguém bruto e violento. Em duas passagens Driss se comporta como um verdadeiro marginal.
Por conta do estranhamento e da excessiva caricaturização (que traz a comédia) lembrei de ‘A Riviera não é aqui’. Filme que perdeu o título de filme mais visto na França para ‘Os intocáveis’, que ainda está em cartaz e já foi visto apenas neste país por 21 milhões de pessoas. Outro filme que me veio a mente foi o filme francês que mais me marcou na vida, “Fabuloso Destino de Amelie Poulain”. O que estes campeões de bilheteria franceses têm em comum? Personagens fortes e carismáticos, toques de humor inteligente. E – ao menos para ‘Fabuloso Destino’ e ‘Os Intocáveis’ – uma trilha musical fabulosa. Uma que vai muito além, que tem muito mais personalidade, do que a dos usos dos graves dramáticos usados de maneira tão asséptica pelo cinema mundo afora.
É isso. Gostei de ‘Os Intocáveis’, recomendo. Abraços e até a próxima sinopse.