O Céu de Suely

Hermila é uma jovem de 21 anos que está de volta à sua cidade, a pequena Iguatu, localizada no interior do Ceará. Ela volta com seu filho, e aguarda para daqui a algumas semanas a chegada do pai da criança, que ficou em São Paulo para acertar assuntos pedentes. Porém o tempo passa e o pai simplesmente não aparece. Querendo deixar a todo custo o lugar, Hermila decide rifar seu próprio corpo para conseguir dinheiro para comprar passagens de ônibus para um lugar distante.

O diretor Karim Aïnouz, filho de brasileira com argelino, Franco-brasileiro, nasceu em Fortaleza, Ceará. Cursou arquitetura e urbanismo em Brasília, fez mestrado em história do cinema em Nova York e foi assistente de montagem e direção de longas-metragens no início dos anos 90. Trabalhou como curador, assistente de direção e assistente de montagem em vários projetos, como Veneno (1994), de Todd Haynes, e Arizona dream (1993), de Emir Kusturica. Em 2005, colaborou nos roteiros de Cidade baixa, de Sérgio Machado e Cinema, aspirinas e urubus, de Marcelo Gomes. Em 2000 fez um curta-metragem, Rifa-Me que serviu de inspiração para O Céu de Suely.

O Céu de Suely estreiou fora do país, no 63ª Festival de Veneza 2006 na Mostra Orizzonti, sendo o único filme brasileiro selecionado para o evento. Fato incomum. O diretor Karim Aïnouz também é conhecido por seu tão elogiado Madame Satã. Do personagem malandro carioca, o diretor, agora retorna para filmar em seu próprio estado

Iguatu é uma cidade no interior localizada no Ceará, entrecortada pelo trem e pelas rodovias, de luzes e sons, propagandas que ecoam um mundo distante, o mundo da cidade grande. É nesse cenário que a protagonista Hermila (Hermila Guedes), está de volta a sua cidade-natal. Traz o filho pequeno no colo, à espera de Mateus, seu namorado, que ficou em São Paulo. As mechas no cabelo da personagem simbolicamente representam uma cultura da metrópole paulistana, causando um certo estranhamento entre os moradores do interior, trazendo ao filme uma impressão de que há uma diversidade de novidades acontecendo a todo instante, mas certamente em algum lugar distante dali.

Esses pontos de luz desfocados dos veículos que cintilam no fundo da imagem nas cenas noturnas parecem chamarizes enviados à distância, mensagens luminosas de um mundo mais povoado e dinâmico. Hermila percebe que a vida na cidadezinha pouco muda: os comerciantes, os moto-táxis, os ficantes e as vizinhas fofoqueiras são sempre os mesmo. Diante de uma rotina sufocante, a personagem percebe que seu namorado não mais voltará, não aceita mais viver naquele eterno-retorno, decididamente resolve sair daquele local.

Uma das formas da personagem conseguir dinheiro, é vendendo rifas. Como ela começa vendendo uma garrafa de uísque, mas é muito pouco para seu novo plano de comprar uma passagem para ir para Porto Alegre, onde vai tentar melhorar de vida. Para isso, ela resolve rifar “uma noite no paraíso”, que significa que o vencedor terá uma noite com ela para fazer o que quiser.

Ao contar à tia Maria que pretende se rifar, Hermila é questionada: “Que idéia de puta é essa?”, e ela então curiosamentte responde: “Quero ser puta não! Quero ser porra nenhuma!” Não se restringindo a sua tia, Hermila começa a sofrer uma forte coerção social devido um moralismo vigente, através de fofocas e comentários inconvenientes, chegando até mesmo a ser agredida em algumas momentos.

Quando Hermila pergunta a uma balconista na rodoviária, qual é a passagem que ela tem pra mais longe, a temática do filme fica mais evidente. Longe não é Iguatu, longe é São Paulo, longe são as imagens em super 8 que abrem o filme, nostálgicas, saudosas. O foco da narrativa é tanto a distância quanto sua travessia, por mais disfarçadas que sejam. Mas o próprio diretor deixa claro que sua dramaturgia é mais indutiva do que dedutiva. Ele não procura dar explicações, faz sugestões, através de elipses, lacunas narrativas. Nem tudo é contado no filme. Em função do não dito, muito é induzido pelo próprio espectador.

Numa perspectiva do existencialismo sartriano a personagem não quer enganar a si mesma, e sendo condenada a ser livre, opta por escolher, desejando uma fuga na esperança do desconhecido. Surgem então outros problemas característicos do pensamento existencial: A finitude, a contingência e a fragilidade da existência humana; a alienação, a solidão, a incomunicabilidade, o segredo, o nada, o tédio, a náusea, a angústia e o desespero; a preocupação e o projeto. Tudo isso faz com que Hermila passe a ter uma idéia fixa no sentido machadiano: indo até as últimas consequências para concretizar o seu objetivo.

Capturada nos planos abertos em que o céu (que não é seu) toma a maior parte do quadro, a imagem da personagem encolhida num canto, tem-se a impressão de uma claustrofobia às avessas da sequidão do sertão: esse céu, como o próprio diretor específicou, toma a forma de um descampado que tanto liberta quanto oprime.

Em suma, o filme é bem realizado. A trilha, econômica, é usada nos momentos certos, as interpretações são reais, a fotografia de Walter Carvalho é bem executada. O cotidiano, dos moradores dessa pequena cidade são bem retratados, embora a história em alguns momentos, seja um pouco massante.

Uma das definições da palavra “céu” no dicionário é “qualquer lugar onde se possa ser feliz”. O céu é um lugar distante, onde qualquer um pode ser feliz. O céu está em todos os lugares e também em lugar nenhum.O céu que o filme nos entrega é como um cartão-postal impossível; a imagem desse mundo distante e impalpável que Hermila/Suely terá que conquistar através da busca de sua liberdade.

FICHA TÉCNICA

Diretor: Karim Aïnouz

Elenco: Hermila Guedes, Maria Menezes, Zezita Matos, João Miguel, Georgina Castro.

Produção: Walter Salles, Maurício Andrade Ramos, Hengameh Panahi, Thomas Häberle, Peter Rommel

Roteiro: Maurício Zacharias, Karim Aïnouz, Felipe Bragança

Fotografia: Walter Carvalho

Trilha Sonora: Berna Ceppas, Kamal Kassim

Duração: 90 min.

Ano: 2006

País: Brasil

Gênero: Drama

Cor: Colorido