O Espetacular Homem-Aranha (2012) X Homem-Aranha (2002): Duas versões da mesma história, ou duas histórias para a mesma versão?
Dez anos. É esse o tempo que separa “O Espetacular Homem-Aranha” (2012), dirigido por Marc Webb, do simplesmente “Homem-Aranha” (2002), primeiro capítulo da trilogia de enorme sucesso dirigida por Sam Raimi. Na comparação entre as duas fitas, o legal não é tentar ver qual supera a outra, mas sim verificar as estratégias utilizadas pelos diretores e roteiristas a fim de contar a história de um dos personagens mais importantes da cultura pop e ícone da editora Marvel – o Homem-Aranha.
O que de pronto se observa na adaptação cinematográfica de Sam Raimi é que o cineasta respeita o máximo possível a origem do herói como fora contada em suas primeiras histórias, no longínquo ano de 1962. Porque, caso não, o longa já estaria prontamente destinado ao fracasso, uma vez que o público-leitor das histórias em quadrinhos é um dos mais exigentes e não se agrada em nada quando se depara com modificações bruscas nas mitologias dos seus personagens.
Mesmo assim, não há como não dizer que Raimi não tenha se arriscado. Originalmente, quando picado de maneira acidental por uma aranha cuja genética havia sido modificada, Peter Parker adquiriu alguns poderes (flexibilidade física, sentidos mais aguçados), porém não o de produzir biologicamente sua própria teia. Mexendo em um dos pontos mais cruciais de sua mitologia, Raimi fez que o seu Aranha (intepretado por Tobey Maguire) produzisse seu fluido de teia em seu próprio corpo, como se fosse um outro poder adquirido devido à picada. Embora as diversas explicações dadas, os fãs mais tradicionais não gostaram nem um pouquinho.
Outro ponto modificado trata-se da primeira grande paixão do mascarado. Nas primeiras histórias, a musa inspiradora é Gwen Stacy, uma jovem que acaba sabendo da vida dupla de Peter Parker, mas que paga um preço caro por isso: é morta pelo Duende Verde, o vilão que protagoniza o primeiro filme da franquia. Entretanto, a equipe criativa resolveu escalar a ruiva Mary Jane Watson (Kirsten Dunst) como a primeira namorada. Explicou-se que esta tinha maior apelo comercial que aquela, uma vez que era mais conhecida do grande público e havia protagonizado um número maior de histórias com o vigilante nova-iorquino. Mas alguém duvida de que isso também não tenha convencido aos fãs mais ortodoxos?
O perfil do personagem também foi mantido. Ao assistir à trilogia, basta ter um pouco de atenção para verificar que o personagem vai aos poucos ganhando um senso de humor e ficando mais irônico, trazendo para sua vida uma característica que era mais presente em seu alter-ego. Essa mudança de perfil veio das próprias HQ’s. Nas primeiras revistas, Parker era um adolescente bobão, nerd, de poucos amigos, chacota da escola, um pouco triste, e isso foi respeitado no filme. Pouco tempo depois, tendo a percepção dos seus poderes, que ele foi se soltando, e seus voos metaforicamente passaram também a simbolizar a descoberta de si mesmo. A liberdade experimentada pelo mascarado também passava a fazer parte da vida do homem.
2012 é um ano importante para a cronologia do Aranha. Além de o primeiro filme da trilogia completar 10 anos e de o herói fazer 50 anos de criação, marca a estreia de uma possível nova franquia. Agora, sob o título pomposo de “O Espetacular Homem-Aranha” (o nome integral da revista), a sua origem é revisitada, e, logicamente, os fatos são contados de outra forma.
Depois da polêmica negativa de “Homem-Aranha 3” (2007) – um sucesso de bilheteria mas que obteve muitas críticas – Sam Raimi chegou a trabalhar naquele que seria o quarto projeto da franquia. O roteiro, modificado várias vezes, teria a princípio o Lagarto como inimigo do herói mesmo. Ocorre que o diretor se desvinculou do projeto por incompatibilidade criativa, mas a Sony não se deu por satisfeita. Rendendo milhões de dólares em todo o mundo, a empresa sabia que tinha um verdadeiro Midas em suas mãos e que, se não trabalhassem a tempo em um novo filme, os direitos do personagem voltariam para a Marvel, a editora que o criou. Resolveram assim fazer um “reboot”, que, na linguagem da sétima e nona artes, significa recontar a origem de um personagem.
Com equipe totalmente reformulada, Peter Parker ganha novamente as telas, agora vivido pelo pouco conhecido Andrew Garfield. Como não deveria deixar de ser, os elementos essenciais continuam lá, embora contados de outras formas: a picada, a inércia de Peter que resultou na morte do Tio Ben, o ringue onde o herói se descobriu, entre outros. Mas as diferenças são muitas.
Primeiro, a cronológica. A versão de 2012 se abrange mais ao público não muito familiarizado com as peripécias do protagonista. Há uma certa didática ao começar o filme mostrando Parker ainda criança e tendo de ir morar com os seus tios, May e Ben Parker, pois seus pais legítimos necessitam fugir do país, uma vez ameaçados. Essa apresentação é muito rápida, porém elucida bastante o entendimento da trama. Em um salto temporal, já o vemos rapaz, nas situações muito semelhantes às apresentadas no filme de Raimi.
Entretanto, Parker aqui não é um fotógrafo profissional. Ou seja, todo o núcleo do Clarim Diário (incluindo a figura de JJJ) está ausente desta versão. Ele é apenas um colegial, aspirante a cientista. Ademais, Garfield – uma excelente escolha, por sinal – dá um tom mais descolado ao personagem, muito condizente com o perfil atual do herói nos quadrinhos. Embora ainda tímido, distraído, atrapalhado e nunca pontual, Peter é menos triste e leva consigo já um grande senso de humor. Essa característica é cedida ao seu alter-ego; não o contrário.
O garoto também agora “chega junto” e convida Gwen Stacy (Emma Stone), seu primeiro amor, para saírem, o que acaba resultando em namoro. Esse tom leve é a chave para o público se identificar mais com o herói, o que a princípio não acontece com a versão de Maguire. Em contrapartida, este é mais solitário, pois o núcleo da família Osborn também não aparece fisicamente na trama, embora Norman (a identidade civil do Duende Verde) seja o responsável por todos os acontecimentos trágicos, incluindo a transformação de Curt Connors (Rhys Ifans) no Lagarto.
Se o ator deste capítulo é mais carismático que o do outro, o diretor, por sua vez, não. Marc Webb, estreante em produções gigantescas desse naipe, não faz feio, mas nem de longe tem o olhar detalhista de Raimi. Essa conta, na verdade, é o que equilibra os dois filmes, fazendo que existam assim tanto pontos positivos como negativos nas duas produções.
Acompanhando essa versão menos infantilizada do personagem, a maioria das cenas de “O Espetacular Homem-Aranha” são noturnas, o que, querendo ou não, dá ao personagem uma certa emancipação. Algumas críticas dizem que o personagem foi trabalhado em uma versão mais sombria, do que eu discordo inclusive. Não há como o Homem-Aranha ser um personagem sombrio, esse adjetivo não combina com sua personalidade. O ímpeto de vingança, de querer encontrar o assassino de seu tio, também estava presente no primeiro filme. Porém, em ambos, ele canaliza esse sentimento e o transfere na feitura de boas ações, ajudando a polícia de Nova Iorque, prendendo ladrões e combatendo inimigos, embora nunca sendo verdadeiramente compreendido.
Respondendo ao título deste artigo, creio que o que temos é a mesma história em duas versões. E elas se complementam e dialogam entre si, não poderia ser diferente disso. As duas produções merecem o reconhecimento como “espetaculares”, pois souberam dar a elas traços únicos e uma linha narrativa coesa.
Algumas pessoas devem imaginar que se trata apenas de um caça-níquel e de que não havia necessidade de recontar a história em um prazo tão curto. Não deixam de ter razão, pois necessidade mesmo nunca houve. O que houve foram motivos, de diferentes aspectos. Porém, os cuidados com a produção, com o roteiro e com a mitologia do herói fazem desse capítulo um digno presente em homenagem ao meio século de existência do personagem.
Compre o box recém-lançado da trilogia de Sam Raimi. Vá ao cinema e confira a versão de Marc Webb. Tire suas próprias conclusões. E, acima de tudo, divirta-se!