Mais Estranho que a Ficção (Stranger Than Ficction - 2006 - Marc Forster)
Mais Estranho que a Ficção (Stranger Than Ficction - 2006 - Marc Forster)
Para quem já viu Adaptação, Quero ser John Malkovich, Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças e produções de mesmo gênero creio que esse filme será um ótimo adicional para a categoria. Para quem viu e não gostou, o que tenho a dizer é que provavelmente não gostarás também desse. Para quem não viu nenhum deles, recomendo que vá vê-los com a mente aberta.
Harold Crick é um homem metódico e solitário, auditor do fiscal do Imposto de Renda, tem uma vida medíocre e totalmente previsível. A mente matematizada do sujeito torna sua existência algo duro e não é forçoso constatar a falta de tato com o lado social que ele tem somente vendo seu apartamento estéril, frio e organizado.
Por outro lado de modo igual estéril vemos Ray Eiffel. Escritora que não sabe como terminar seu livro. Sua casa chega a ser mais fria do que a de Harold. Seu traquejo social chega a ser menor ainda que de Harold. Mas por capricho ela extravasa sua falta em seus livros, descrevendo as situações de forma magnífica e tocante. Uma compensação talvez, mas que não deixa com que o espectador crie muita simpatia por ela. Meio afetada e tensa ela dá o tom exato de sua própria angústia.
Uma das coisas mais belas do filme é a calma e tranqüilidade com que vai se desenrolando. Um filme de “comédia” (o que não é de todo) geralmente não chega às duas horas de projeção. Esse alcança a marca dos 113 minutos. Que não passam arrastados. O roteiro consegue se sustentar e por mais que o final seja um tantinho longe do ideal ele se mantém também por uma lógica interna interessante.
O fato aqui, o que mais pega no filme, é o dilema, proposto lá pras tantas. Qual nos pergunta, inevitavelmente essa pergunta transborda do filme para toda a vida possível, se o que vale mais: uma vida humana ou uma obra de arte?
Aqui entramos na questão do sentido da vida. Em uma sociedade laica como a que temos o sentido da vida não mais pertence à esfera religiosa. Não creio que ninguém hoje consolidado na sociedade ocidental capitalista lutaria e morreria por Deus. Nem tampouco nosso sentido de vida gira ao redor do Estado. Quem lutaria e morreria defendendo ideais como os do meio do século passado? Comunismo, socialismo? Alguns talvez lutariam pela democracia, mas em casos muito raros. Vejamos por exemplo o país de Hugo Chavez. Protestos e mais protestos, mas lutas, mortes? O povo corre.
Chegamos no ponto em que o sentido da vida não está mais em nenhuma esfera acima do ser humano, mas no próprio humano. A vida não tem sentido, a não ser a que damos a ela. E é nesse ponto que ela só ganha realmente significado para nós, por nós, quando nos damos esse rumo. Até saber que vai morrer logo, Harold nunca tinha pensado no sentido da sua vida. Uma metáfora exigente com a maioria das pessoas que se fizessem a sério a pergunta “Se eu soubesse que vou morrer logo o que faria?”
Mas além da questão do sentido, que toma uma nova perspectiva quando Harold começa a dar valor a si mesmo, pois, afinal, é sua vida que está em jogo, ele encontra uma questão maior quando em determinado momento do filme há de se escolher. Uma escolha dura e cruel, mas ao mesmo tempo com um argumento forte. Todos morremos, e isso é o que é mais certo, mas e se pudéssemos morrer em prol de algo maior, algo eterno? Se escolhêssemos morrer deixando uma obra literária de muita qualidade que reverberaria por toda a humanidade?
Atenção!, a partir daqui detalhes são revelados que podem comprometer o entretenimento direto do filme! Mas se quiser ler mesmo assim, vá em frente!
É no momento em que Harold decide espontaneamente morrer para que o livro, a obra prima, de Eiffel pudesse ganhar realidade é que vemos o quanto o filme ganha em profundidade. Aliás nessa hora é que toda a forma do filme conflui para um final, que mereceria as duas vertentes a que tende. Naquele tipo de dvd em que se pode escolher o final do filme, alternativo e o original, quando nesse não haveria original, mas final 1 e final 2.
Pela lógica do filme, por toda sua construção, que Harold morresse seria um final espetacular, estupendo, tanto do próprio filme, como do livro que estava sendo escrito dentro do filme. Mas, como ignorarmos a frustração de Eiffel ao saber que sua obra poria fim a um ser humano de carne e osso? Nessa hora o sentido da vida, é maior para nós pelos outros que qualquer coisa. Morreria você para salvar uma obra de arte ou um ser humano? Pergunta difícil.
Enfim a decisão de Eiffel que angustiada por quantas pessoas já tinha “matado” trás uma humanidade para a escritora que mesmo sabendo-se capaz de criar uma obra prima, se isso for à custa direta de uma vida... não que não valha a pena, mas é muito para ela, muito para uma consciência. É então que do meu ponto de vista o filme ganha em passar uma mensagem que é fantástica.
Diz ela no final de seu livro, que é para mim naquele ponto a melhor coisa a ser dita, algo do tipo: É então que quando o desespero bate, quando não há mais nada a esperar, quando tudo já está acabado (Harold sabia que ia morrer, mas não morre), é nesse ponto que a vida toma a perspectiva maravilhosa. É nessa hora que, liberto das esperanças e medos, a existência fica plena, nem que seja por breves momentos de ênstase. É nesse momento que pode-se viver e aproveitar ao máximo, nem que seja um biscoito, o tato da pele alheia, um abraço, ou qualquer ação mundana que outra hora passaria despercebida, com total intensidade. E por isso mesmo, para mim, por mais que Harold não morresse a coisa toma toda a perspectiva dessa linda e bela mensagem, que, filosoficamente falando, compartilho inteiramente.
Um bom exemplar de cinema, embalado por questões pertinentes, cuidadoso, carinhoso e bom ótimas interpretações. Mais Estranho que a Ficção entra pro rol dos melhores filmes do ano e com propriedade.
ps. Mais acima escrevi a palavra ênstase. E não foi um erro de grafia não, ela se contrapõe diretamente ao êxtase, que é um contato com algo maior transcendente, o ênstase é o contato com a realidade total, despida de qualquer transcendência, é o contato total da imanência.