Primo Basílio: uma (re) leitura do clássico de Eça de Queiroz

O PRIMO Basílio. Direção: Daniel Filho. Produção: Daniel Filho. Intérpretes: Débora Falabella, Reynaldo Gianecchini, Fabio Assunção, Glória Pires. Roteiro: Euclydes Marinho, com colaboração de Rafael Dragaud, baseado em adaptação de Daniel Filho e Euclydes Marinho do romance de Eça de Queiroz. Distribuidora: Buena Vista Internacional, 2007. I DVD (106 min.), color.

Esta resenha tem como finalidade, apresentar noções relativas à leitura fílmica do longa Primo Basílio, dirigido pelo diretor Daniel Filho. O filme consiste em uma adaptação da obra de Eça de Queirós O Primo Basílio, publicado em 1878 e constitui uma análise da família burguesa urbana no século XIX. O filme, resgata um pouco desse clássico realista da Literatura Portuguesa escrito por Eça em Portugal no século XIX, transferida no filme para São Paulo, ano de 1958, século XX.

A história se passa em torno de um casal burguês, Luisa (Débora Falabela) e Jorge (Reynaldo Gianecchini), que aparentemente pareciam viverem felizes. Jorge viaja por motivo de trabalho e deixa Luiza, esposa romântica, sonhadora e mimada, que vive uma vida fútil. Sua imagem demonstra fragilidade, tanto física como emocional. A personagem vivia em seu "mundinho particular", mundinho esse, repleto de luxo, ilusões e sonhos idealizados a partir das telenovelas que assistia.

Aproveitando a solidão de Luisa entra em cena o primo Basílio (Fabio Assunção), ex-namorado da protagonista quando jovem. Ao rever a prima, o boêmio Basílio pretende usá-la para passar o tempo em que está na cidade cumprindo obrigações de trabalho. O reencontro dos dois acontece no teatro, depois disso, ele passa a visitá-la em sua casa. Em uma dessas visitas ambos começam a viver um caso extraconjugal.

Entretanto, a suposta harmonia e felicidade do casal é abalada quando o romance é descoberto por Juliana, criada de Luisa que cuidava da casa, uma mulher madura, sempre mal-humorada, que carregava um ódio profundo aos patrões em geral, invejosa dos bens que ela não conseguira ter na vida, Juliana intercepta correspondências dos primos amantes e passa a chantagear Luiza, que, desesperada com as ameaças e chantagens da criada sede aos caprichos dela. Em função dessas ameaças, o lugar de patrão e empregado se reverte, em muitos momentos, Luiza assume o papel de criada, recebendo o mesmo tratamento que aplicava à Juliana. A empregada assumiu o papel de patroa, com direito a assistir as telenovelas que Luiza tanto gostava, ganhou até roupas e um quarto melhor, tudo em troca de seu silêncio.

A empregada interpretada por Gloria Pires “embora personagem secundária (...) concentra em si a causa dramática do conf1ito central do Primo Basílio e acaba encarnando uma das mais vivas e expressivas criações de Eça de Queiroz” (MOISÉS, 2001, p.357). Essa personagem representa ‘a classe oprimida e sofredora dos criados de servir em litígio com os privilégios patronais. Juliana é a representante rancorosa do pequeno mundo dos empregados invejosos” (Idem, 2001, p.357).

É importante ressaltar que, os demais personagens que frequentam a casa de Jorge e Luisa compõem um retrato da sociedade burguesa lisboeta que Eça denuncia quando diz “Eu não ataco a família − ataco a família lisboeta − a família lisboeta produto do namoro, reunião desagradável de egoísmos que se contradizem” (Idem, p.357).

No filme, essa sociedade citada por Massaud Moisés, não aparece muito, pouco se vê a rua, existem poucas cenas externas. Em relação a isso, o diretor afirma que, o filme foi concentrado na história central, deixando para traz a representação da sociedade apresentada por Eça de Queiroz no livro. Isso foi necessário, principalmente para poupar o tempo de exibição da película. Contudo, a representação dessa sociedade, acima denunciada, ficou a critério das personagens escolhidas para fazerem parte da trama.

A exemplo disso, a problemática realista apresentada no filme pode ser representada pelo tom irônico de Basílio durante toda a trama, principalmente no final do filme, onde o cinismo do boêmio se revela nitidamente ao saber da morte da prima. Para ele, Luiza era uma esposasinha qualquer, a frase: “jantes ela do que eu”, pronunciada pelo primo, deixa evidente suas verdadeiras intenções, seu lamento foi somente pela perda da mulher, que significava para ele um bom passatempo.

Diante da leitura fílmica percebe-se que, em alguns momentos a película parece apimentar a suposta paixão vivenciada por Luisa e Basílio. Isso é perceptível em inúmeras cenas calientes vivenciadas pelos amantes. É, pois, em relação ao comportamento do triângulo amoroso acima supracitado que se faz pertinente analisar o comportamento sexual de Luiza, personagem central da trama, que como a maioria das mulheres do século XX ainda não havia se libertado do papel de “esposa do lar”. Papel esse, instituído em meados do XVI, no qual, a mulher passou a ser submissa ao homem e sua função foi restrita ao mundo do lar e dos filhos.

De acordo com Michael Focault, o discurso sobre sexo, favoreceu mecanismos de poder em instituições, grupos sociais e na medicina. Esses mecanismos também foram responsáveis pelas concepções adotadas pela sociedade patriarcal capitalista, que concebia o direito à propriedade de forma mais rigorosa, com isso, o direito de posse da mulher também passou a ser mais rigoroso. A partir de então, a sexualidade feminina passou a fazer parte do jogo de interesses masculino, interesses esses, justificados pela junção dos bens materiais das famílias e pela função de “reprodutora da espécie”, delegada à mulher.

A sexualidade é então, cuidadosamente encerrada. A família conjugal a confisca. E a observa-a, inteiramente na seriedade da função de reproduzir. Em torno do sexo se cala. O casal, legitimo e procriador, impõe-se como modelo, [...] reservando-se o principio do segredo. [...] ao que se sobra só resta encobrir-se; o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa os discursos (FOUCAUT, 1998, p.10-11).

Com isso, o sexo passou a ser censurado e/ou reprimido, principalmente na instância da enunciação. Parafraseando o autor, é possível afirmar que desde a época clássica a repressão foi “a ligação entre poder, saber e sexualidade” (Idem, 1998, p.lI) Para ele, a liberdade de falar sobre sexo vem sendo repreendida na sociedade desde o século XVI. Seu discurso, defende a não existência da repressão da sexualidade, mas sim uma forma de a explorar e controlar. Ou seja, o que há é o alto controle, por princípios éticos, porque as pessoas sabem o que podem ou não fazer.

O adultério, por exemplo, quando praticado pela mulher, era considerado crime contra a legitimidade dos descendentes do marido, por isso, a educação e o comportamento sexual dela era moldado somente para a reprodução. Diante desse pressuposto, as mulheres não desfrutavam dos ‘benefícios do sexo”, muitas não sabiam, ao menos, o que era sentir prazer.

Antes de começar a se relacionar com Basílio, Luiza, embebida pelas forças ideológico/conservadoras da época, exercia esse tipo de comportamento, tinha um bom relacionamento com o marido, mas não “desfrutava” dos prazeres sexuais com ele. Isso pode ser observado na primeira cena de sexo do filme − entre Luiza e Jorge. Ao analisar esta cena, pode-se perceber que o ato em si, comparado com a noção de sexo que se tem atualmente e com o relacionamento da protagonista com Basílio, é feito de forma muito discreta, o casal se

despe e vai para debaixo do lençol, o ato se resume a isso.

A mulher, símbolo sagrado e inviolável do lar, era esposa, dona-de-casa, mãe. No entanto, sua sexualidade era centrada somente na maternidade e na satisfação de seu marido. Diante dessa concepção, pode-se observar no filme, duas representações da sexualidade feminina vividas por Luiza: a primeira é a de mulher passiva sexualmente, que influenciada pela educação recebida, não conhecia os prazeres que norteiam o sexo. Nesse momento ela assume o papel de reprodutora e de ‘instrumento” de satisfação de seu marido, nesse caso Jorge.

A segunda representação, é assumida na relação entre Luiza e seu primo Basílio, com ele a protagonista descobre o prazer que um homem pode proporcionar a uma mulher. Essa descoberta pode ser observada nas sequencias de sexo, protagonizada pelos amantes. Na primeira cena, do casal no “paraíso” nome que designa o quarto alugado para os encontros, é perceptível a vergonha e o pudor de Luiza, ao se despir na frente de Basílio, nesse momento ela tira a roupa e entra debaixo dos lençóis, do mesmo jeito que fez com seu marido na primeira cena de sexo do filme. Basílio, por sua vez, puxa o lençol, inicialmente ela não quer deixar, mas depois cede, mesmo assim, ela cobre com as mãos os seios e seu genital. Essa cena pode evidenciar a liberdade sexual da mulher, nesse caso Luiza, é Basílio quem inicia, de fato, Luiza no mundo dos prazeres sexuais.

Diante do exposto, pode se afirmar que a releitura feita no filme de Daniel Filho, revisita o clássico de Eça de Queiroz, O primo Basílio, e sugere novos desenhos para a leitura contemporânea desta obra, num viés intertextual.

Referencias:

Crítica - Primo Basílio. Disponível em: <http://www.cranik.com/primobasilio.html>. Acesso em: 19/10/2010.

FOUCAUL T, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984. p. 9-55.

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. São Paulo: Cultrix, 2001, p.

355-358.

Tamires Monteiro e Eliana Pereira
Enviado por Tamires Monteiro em 20/02/2012
Reeditado em 01/03/2012
Código do texto: T3510320