“Menina de Ouro” (Million Dollar Baby)
“Menina de Ouro” (Million Dollar Baby)
“Frank gostava de dizer que boxear era antinatural, que tudo no boxe era ao contrário, às vezes o melhor modo de dar um soco é se afastar, mas se você se afastar demais pode ser derrotado”.
A narração de Morgan Freeman obriga carinhosamente o cinéfilo a pausar o DVD e ler outra vez. Trata-se de uma espécie de comunicação ilustrada por palavras. E a entonação de Freeman ajuda um bocado. Em entrevista recente ele diz que, ao olhar para sua carreira, sente uma emoção especial por esse papel.
Na década de 10, século XXI, Clint burilou frontalmente a Igreja, neste, em “Gran Torino” e mais um par de filmes, talvez no intuito de, através de suas provocações, levar o espectador a refletir.
Escrito por Paul Haggis (“Crash”), baseado na obra de F.X. Toole, conclui-se durante o espetáculo que todo mundo ali anda extremamente afinado com a escrita.
“Frank (Clint) diz: mostre-me um boxeador que só tenha coração (paixão) e eu lhe mostro um homem à espera da derrota”.
Com essas palavras a narrativa apresenta o personagem menor Danger (Jay Baruchel) cliente da Hit Pit Gyn, a academia cujo proprietário é Clint (Frank), que estrela, produz e dirige.
Poeticamente dir-se-ia que “Menina...” levou tantos prêmios quanto existem estrelas no céu. Poeticamente, e lembrando que o certame não se restringe apenas à estatueta californiana.
O zelador da academia narra a história. Um narrador nada mais é do que um franco atirador. Ele deve estar posicionado em algum lugar na trama para que possa ver tudo e dar ora o seu parecer, ora até mesmo o voto de minerva. Morgan Freeman levou o Melhor coadjuvante por esse papel.
Hilary (Swank) é quase um filme à parte. Seu papel reúne raros precedentes na compêndio das películas. Mulher, boxeadora, pobre (o texto original a chama de trash – lixo), com uma tenacidade canina, humilde como uma ervilha, ela transforma um suposto filme de boxe numa aventura de detalhes nos campos da mente e da emoção. Uma vasta aventura de detalhes. Tanto ela quanto Clint (direção) e Morgan levaram a estatueta.
Não há o que sublinhar em “Million...”, pois já veio inteirinho sublinhado. A dinâmica entre Morgan e Clint e o passado de ambos, a relação dos dois, algo que lembra o conjugal, a escalada de Hilary, desde o seu primeiro pedido ao treinador, às mesas que ela limpa, os restos de comida que guarda, as moedas que conta, do início dos treinos às sucessivas vitórias – Eastwood dá aula de direção, todas as lutas chegam ao mesmo desfecho, mas cada uma delas possui uma abordagem diferente, ponto para a criação e ganho para o espectador, já que a prolixidade em qualquer nível revela-se sempre maçante.
É possível cogitar que nenhuma atriz conhecida de Hollywood (Sandra Bullock foi cotada para o papel) teria construído essa personagem com um resultado tão admirável.
O zelador mora num quartinho nos fundos da academia. Ele simboliza as legiões que tiveram o seu momento no palco da vida e depois tudo passou, nessa altura do campeonato, cego de um olho em virtude uma luta longínqua resta-lhe um cômodo precário e uma rotina de “limpar o cuspe dos outros”, palavras do seu patrão (Clint). Freeman transpira um misto de melancolia e dignidade igualmente raras, seja na realidade, seja na ficção.
O ato de ensinar, ou antes, a arte de ensinar, é abordada aqui num grau muito elevado na escala dos valores, pode nomeá-los como quiser: morais, estéticos, intelectuais, esportivos, tanto faz, o cerne desta proposta apenas o usa o boxe como pretexto para transmitir certas pérolas da Filosofia Perene.
Às vezes ficamos anos cutucando uma coisa sem obter grandes resultados porque nos falta um elemento denominado “macete”.
Nos dois momentos em que os mestres de Hilary aparecem para libertá-la de sua ignorância, os rostos, tanto de Clint quanto de Morgan, estão na penumbra, só se podem ver seus corpos.
“Estou comemorando, comenta ela para o treinador, porque desde os 13 anos eu sirvo mesas, e hoje, aos 32, posso estar velha para esta atividade, mas é a única coisa que gosto de fazer”.
Nesta cena ela diz muito mais e sua fala e suas feições vão se transformando ao ponto em que humildade anterior revela uma vontade e esta denota ser irrefreável. Do jeito que a vida gosta. Finalmente o dono da Hit Pit Gyn decide ajudá-la. E começa com um macete.
Soube de uma vida que foi totalmente transformada quando lhe disseram: procure compreender ao invés de ser compreendido.
Todo “Million Dollar...” é uma vasta soma de miniaturas que desfilam perante o espectador e ganham visibilidade durante a revisão.
No texto de Haggis , ou de F.X. Toole, tanto faz, aparece repetidas vezes um dos mais importantes mandamentos espirituais: proteja-se sempre, também conhecido por orai e vigiai.
Clint tem uma filha em algum lugar, ele manda cartas e as cartas voltam para uma caixa de sapatos repleta de cartas devolvidas. Com isso comunicou-se tudo.
Maggie Fitzgerald (Hilary) tem uma família digna de se colocar na privada e dar descarga. Fica difícil para o espectador exercer com eles o caminho da empatia. Cada um sugere uma caricatura, mas obra é tão exata que eles infelizmente são exatos.
Maggie subiu um patamar na senda e vai lutar na Inglaterra. Lá, Clint a presenteia com a capa bordada em gaélico “Mo Cuishle” e o público, familiarizado com o termo, cai de simpatia por ela. No primeiro round Hilary sente a força da adversária e comenta com o chefe. O chefe usa de certa psicologia elementar, que só funciona perfeitamente com os fortes de espírito. Ele expressa sem meandros: ela é melhor do que você. Ela é mais jovem, mais forte e tem mais experiência. O que você vai fazer?
A Menina de Ouro volta para o ringue e ganha no segundo assalto. A platéia delira entoando “Mo Cuishle”.
Todo lutador, pondera Freeman, tem um número certo de lutas durante a sua carreira. Ocorre que esse número só se revela no término do ofício. Maggie encerra seu próprio show por conta de um descuido. “Proteja-se sempre”, disse Frank vezes sem conta. E por uma fração de segundo a vida ganha um triste contorno.
O dito código de produção norte americano – inventado em 1930 pelos estúdios a fim de garantir “níveis aceitáveis de moral e bons costumes”, foi revisto em 1966 e em 1968 chegou ao padrão que hoje conhecemos como sistema de classificação de filmes.
Sem a menor sombra de dúvida é justo o rótulo de drama para este trabalho. Curiosamente, porém, a carapuça do drama, com todo o seu ímpeto, adentra no espetáculo nos seus trinta e poucos minutos finais.
Até então é uma poesia sutil e poderosa, uma ode, talvez, ao bom combate, no caso de Hilary, e com certeza um tributo aos bilhões de Danger espalhados pelo globo, apaixonados, despreparados e despercebidos em todos os ringues e palcos, desde que o mundo é mundo.
Ou, como diria Nietzsche: nada do que é humano me será alheio.
“Menina de Ouro” (Million Dollar Baby)
“Frank gostava de dizer que boxear era antinatural, que tudo no boxe era ao contrário, às vezes o melhor modo de dar um soco é se afastar, mas se você se afastar demais pode ser derrotado”.
A narração de Morgan Freeman obriga carinhosamente o cinéfilo a pausar o DVD e ler outra vez. Trata-se de uma espécie de comunicação ilustrada por palavras. E a entonação de Freeman ajuda um bocado. Em entrevista recente ele diz que, ao olhar para sua carreira, sente uma emoção especial por esse papel.
Na década de 10, século XXI, Clint burilou frontalmente a Igreja, neste, em “Gran Torino” e mais um par de filmes, talvez no intuito de, através de suas provocações, levar o espectador a refletir.
Escrito por Paul Haggis (“Crash”), baseado na obra de F.X. Toole, conclui-se durante o espetáculo que todo mundo ali anda extremamente afinado com a escrita.
“Frank (Clint) diz: mostre-me um boxeador que só tenha coração (paixão) e eu lhe mostro um homem à espera da derrota”.
Com essas palavras a narrativa apresenta o personagem menor Danger (Jay Baruchel) cliente da Hit Pit Gyn, a academia cujo proprietário é Clint (Frank), que estrela, produz e dirige.
Poeticamente dir-se-ia que “Menina...” levou tantos prêmios quanto existem estrelas no céu. Poeticamente, e lembrando que o certame não se restringe apenas à estatueta californiana.
O zelador da academia narra a história. Um narrador nada mais é do que um franco atirador. Ele deve estar posicionado em algum lugar na trama para que possa ver tudo e dar ora o seu parecer, ora até mesmo o voto de minerva. Morgan Freeman levou o Melhor coadjuvante por esse papel.
Hilary (Swank) é quase um filme à parte. Seu papel reúne raros precedentes na compêndio das películas. Mulher, boxeadora, pobre (o texto original a chama de trash – lixo), com uma tenacidade canina, humilde como uma ervilha, ela transforma um suposto filme de boxe numa aventura de detalhes nos campos da mente e da emoção. Uma vasta aventura de detalhes. Tanto ela quanto Clint (direção) e Morgan levaram a estatueta.
Não há o que sublinhar em “Million...”, pois já veio inteirinho sublinhado. A dinâmica entre Morgan e Clint e o passado de ambos, a relação dos dois, algo que lembra o conjugal, a escalada de Hilary, desde o seu primeiro pedido ao treinador, às mesas que ela limpa, os restos de comida que guarda, as moedas que conta, do início dos treinos às sucessivas vitórias – Eastwood dá aula de direção, todas as lutas chegam ao mesmo desfecho, mas cada uma delas possui uma abordagem diferente, ponto para a criação e ganho para o espectador, já que a prolixidade em qualquer nível revela-se sempre maçante.
É possível cogitar que nenhuma atriz conhecida de Hollywood (Sandra Bullock foi cotada para o papel) teria construído essa personagem com um resultado tão admirável.
O zelador mora num quartinho nos fundos da academia. Ele simboliza as legiões que tiveram o seu momento no palco da vida e depois tudo passou, nessa altura do campeonato, cego de um olho em virtude uma luta longínqua resta-lhe um cômodo precário e uma rotina de “limpar o cuspe dos outros”, palavras do seu patrão (Clint). Freeman transpira um misto de melancolia e dignidade igualmente raras, seja na realidade, seja na ficção.
O ato de ensinar, ou antes, a arte de ensinar, é abordada aqui num grau muito elevado na escala dos valores, pode nomeá-los como quiser: morais, estéticos, intelectuais, esportivos, tanto faz, o cerne desta proposta apenas o usa o boxe como pretexto para transmitir certas pérolas da Filosofia Perene.
Às vezes ficamos anos cutucando uma coisa sem obter grandes resultados porque nos falta um elemento denominado “macete”.
Nos dois momentos em que os mestres de Hilary aparecem para libertá-la de sua ignorância, os rostos, tanto de Clint quanto de Morgan, estão na penumbra, só se podem ver seus corpos.
“Estou comemorando, comenta ela para o treinador, porque desde os 13 anos eu sirvo mesas, e hoje, aos 32, posso estar velha para esta atividade, mas é a única coisa que gosto de fazer”.
Nesta cena ela diz muito mais e sua fala e suas feições vão se transformando ao ponto em que humildade anterior revela uma vontade e esta denota ser irrefreável. Do jeito que a vida gosta. Finalmente o dono da Hit Pit Gyn decide ajudá-la. E começa com um macete.
Soube de uma vida que foi totalmente transformada quando lhe disseram: procure compreender ao invés de ser compreendido.
Todo “Million Dollar...” é uma vasta soma de miniaturas que desfilam perante o espectador e ganham visibilidade durante a revisão.
No texto de Haggis , ou de F.X. Toole, tanto faz, aparece repetidas vezes um dos mais importantes mandamentos espirituais: proteja-se sempre, também conhecido por orai e vigiai.
Clint tem uma filha em algum lugar, ele manda cartas e as cartas voltam para uma caixa de sapatos repleta de cartas devolvidas. Com isso comunicou-se tudo.
Maggie Fitzgerald (Hilary) tem uma família digna de se colocar na privada e dar descarga. Fica difícil para o espectador exercer com eles o caminho da empatia. Cada um sugere uma caricatura, mas obra é tão exata que eles infelizmente são exatos.
Maggie subiu um patamar na senda e vai lutar na Inglaterra. Lá, Clint a presenteia com a capa bordada em gaélico “Mo Cuishle” e o público, familiarizado com o termo, cai de simpatia por ela. No primeiro round Hilary sente a força da adversária e comenta com o chefe. O chefe usa de certa psicologia elementar, que só funciona perfeitamente com os fortes de espírito. Ele expressa sem meandros: ela é melhor do que você. Ela é mais jovem, mais forte e tem mais experiência. O que você vai fazer?
A Menina de Ouro volta para o ringue e ganha no segundo assalto. A platéia delira entoando “Mo Cuishle”.
Todo lutador, pondera Freeman, tem um número certo de lutas durante a sua carreira. Ocorre que esse número só se revela no término do ofício. Maggie encerra seu próprio show por conta de um descuido. “Proteja-se sempre”, disse Frank vezes sem conta. E por uma fração de segundo a vida ganha um triste contorno.
O dito código de produção norte americano – inventado em 1930 pelos estúdios a fim de garantir “níveis aceitáveis de moral e bons costumes”, foi revisto em 1966 e em 1968 chegou ao padrão que hoje conhecemos como sistema de classificação de filmes.
Sem a menor sombra de dúvida é justo o rótulo de drama para este trabalho. Curiosamente, porém, a carapuça do drama, com todo o seu ímpeto, adentra no espetáculo nos seus trinta e poucos minutos finais.
Até então é uma poesia sutil e poderosa, uma ode, talvez, ao bom combate, no caso de Hilary, e com certeza um tributo aos bilhões de Danger espalhados pelo globo, apaixonados, despreparados e despercebidos em todos os ringues e palcos, desde que o mundo é mundo.
Ou, como diria Nietzsche: nada do que é humano me será alheio.