A GUERRA DOS PELADOS

Resumo

Assisti, nesta última madrugada, a um velho filme de Sylvio Back, cineasta catarinense, sobre a Guerra do Contestado. Essa guerra, acontecida entre 1912 e 1916, na região fronteiriça entre Paraná e Santa Catarina, foi um conflito armado, travado entre a população cabocla do local e as forças policiais desses dois estados e contingentes do exército brasileiro. É um episódio pouco conhecido da História do Brasil, mas que deixou mais de 8.000 mortos entre as forças militares que foram mandadas contra os rebeldes e praticamente dizimou a população da região, constituida principalmene de caboclos analfabetos e miseráveis economicamente. Em tudo isso, como em Canudos, duas décadas antes, foi a miséria e a ignorância, reforçada pelo fanatismo religioso que levou os caboclos à revolta. Mas novamente, em tudo isso, é a injustiça de um sistema e a ganância dos poderosos, o principal motor da revolução. Quando a miséria é combatida com canhões, ao invés de comida, e a ignorância é reprimida com a força ao invés de educação, o que sobra é a violência e a guerra. E como a História sempre é escrita pelos vencedores, os verdadeiros motivos dos grandes genocídios ficam sempre ocultos nas sombras. A Guerra do Contestado foi um desses  conflitos, onde um governo autocrata, injusto e caolho em relação a toda responsabilidade social, preferiu massacrar uma população carente, ao invés de ajudá-la a superar a miséria econômica, social e intelectual em que viviam. Como em Canudos, essa é mais uma nódoa que  pode ser atribuída á jovem república de coronéis e fazendeiros que o Marechal Deodoro proclamou. 

A origem do conflito
 
É interessante. Mas apenas duas décadas separam a Guerra dos Canudos da Guerra do Contestado. E em ambas existe um componente místico a dar uma moldura bizarra e quase irreal para um acontecimento que, já no século vinte, parece impossível acreditar que tenha ocorrido. Mas aconteceu, e por incrível que pareça ainda continua acontecendo no interior do Brasil, onde grandes fazendeiros, criadores de gado, plantadores de soja e extratores de madeira continuam ditando a lei e empurrando as populações naturais dessas áreas para a marginalização.  
A Guerra do Contestado originou-se nos problemas sociais decorrentes  da falta de regularização da posse de uma larga faixa de terra situada entre os Estados do Paraná e Santa Catarina, onde os governos dos dois estados se digladiavam, ora nos tribunais, e as vezes até em escaramuças armadas, pelo estabelecimento de fronteiras mais favoráveis a um e a outro. Era uma região habitada principalmente por pequenos agricultores que praticavam uma cultura de sobrevivência, mas muito cobiçada pelos grandes fazendeiros, produtores de erva mate e extração de madeira.
Os conflitos entre os caboclos da região e os grandes fazendeiros já eram comuns na região, mas degenerou-se em verdadeira guerra quando o governo federal doou  uma extensa faixa de terra nessa região à Southern Brazil Lumber & Colonization Company, com o compromisso de que essa companhia, formada por capital estrangeiro (inglês principalmente) e das companhia madeireiras, construisse ali um ramal da estrada de ferro São Paulo- Rio Grande. Para cumprir esse compromisso a empresa formada para a construção da ferrovia desapropriou uma faixa de duzentos e trinta quilômetros (quinze quilômetros em ambos os lados dos trilhos) deixando sem qualquer meio de sobrevivência uma grande população de caboclos posseiros que moravam exatamente na área desapropriada.
Vários antecedentes de ordem política, social e jurídica estão na origem desse conflito, mas foi principalmente o fanatismo religioso que o transformou numa verdadeira revolução e fez dele o segundo genocídio praticado pelo governo da jovem república brasileira em apenas uma geração. Esse fanatismo, a exemplo dos sertanejos de Canudos, que foram inspirados por Antonio Conselheiro, o Moisés do Sertão, nas terras do Contestado, teve três líderes religiosos a inpirá-lo. O primeiro deles foi um monge chamado João Maria, religioso de origem italiana, que peregrinou pela região pregando e atendendo doentes entre os anos de  1844 a 1870. Era um homem extremamente humilde, e seu exemplo de vida lhe granjeou milhares de admiradores. Considerado santo pela maioria dos habitantes da região, ele incutiu no espirito simples daquele povo uma fé sem questionamento e uma confiança profunda nos designios da Providência, que os fez desdenhar de qualquer promessa que pudesse vir da civilização. Após sua morte, seu lugar como guru e mestre dos sertanejos do Contestado foi assumido por outro monge, um certo Atanás Marcaf, religioso de origem síria, que se dizia ser uma reencarnação do santo monge João Maria. Diferente deste, porém, este novo João Maria  assumiu um perfil messiânico e conclamou os sertanejos a resistir a toda e qualquer iniciativa que visasse prejudicá-los em seus direitos e desviá-los da sua religião. Em 1908 ele desapareceu e foi dado como morto, mas como ele havia dito que logo ressuscitaria, os sertanejos viviam esperando esse fato. E como se tudo fizesse parte de um plano pré-concebido, aparece em 1912 o monge José Maria de Santo Agostinho, que além de místico religioso, era um competente curandeiro e profundo conhecedor de ervas curativas. Embora a polícia paranaense o taxasse de vigarista e enganador, dizendo ser ele, na verdade, um soldado desertor condenado por estupro, cujo nome era Miguel Lucena de Boaventura, o certo é que não lhe foi difícil granjear em pouco tempo a admiração e a confiança do povo. Logo se tornou um mito na região, e a ele eram atribuidas curas espantosas e até um milagre de ressuscitação de uma jovem.
Muito pouco se sabe sobre esse Jesus Cristo do Contestado. Mas o certo é que ele não era um bronco ignorante como seus inimigos o pintaram. Consta que era um homem metódico e organizado, que sabia ler e escrever e costumava anotar em seus cadernos as propriedades medicinais das plantas encontradas na região. Deixou, com suas anotações e comentários, uma interessante contribuição à farmacopéia regional. Foi um dos pioneiros na montagem do que se convencionou chamar de farmácia do povo.
Liderados por José Maria de Santo Agostinho, o contingente de camponeses desapropriados, engrossado pelos trabalhadores demitidos pela companhia construtora da estrada de ferro, decidiu organizar uma comunidade para lutar pacificamente pela terras. Resultando infrutíferas as tentativas de retomar na Justiça as terras – as quais foram declaradas "terras devolutas" pelo governo brasileiro no contrato firmado com a ferrovia - logo a comunidade formada pelos sertanejos tornou-se uma nova Canudos, liderada pelo Monge José Maria. E não tardou para que eles se armassem e começassem uma verdadeira guerra contra a Southern Brazil Lumber & Colonization Company e os fazendeiros que a apoiavam. A comunidade, chamada de Monarquia Celestial, proclamou a sua independência, formando uma espécie de reino místico, governado por Deus e representado na terra pelo seu monge profeta.
Não demorou para que o governo brasileiro, cujo presidente era o Marechal Hermes da Fonseca, visse nesse novo movimento messiânico uma espécie de quilombo perigoso aos interesses econômicos da região. Assim, decidiu reprimi-lo, enviando tropas, que logo ocuparam as comunidades fundadas pelos sertanejos. José Maria, acompanhado de um grande contingente de seus seguidores fugiu  para a localidade de Irani, território que nessa época pertencia ao municipio de Palmas, cidade que estava na jurisdição do Paraná, e que tinha com Santa Catarina,questões jurídicas não resolvidas por conta de divisas territoriais. O governo paranaense, vendo nessa movimentação uma estratégia do governo de Santa Catarina para ocupar terras que lhe pertenciam, mandou contra a turba de sertanejos uma milicia policial. Isso ocorreu em outubro de 1912. Um sangrento confronto aconteceu entre as tropas do governo paranaense e os sertanejos do Contestado num lugar chamado "Banhado Grande". Centenas de pessoas, de ambos os lados foram mortos, inclusive o comandante da milicia, coronel João Gualberto. Mas foi a morte do próprio lider dos sertanejos, o monge José Maria, que levou os rebeldes a declarar guerrra total ao governo.
Os sertanejos, acreditando no que José Maria havia dito, de que ressuscitaria acompanhado de um Exército Encantado, que ele chamava de Exército de São Sebastião, continuaram a luta.  E cada vez com maior motivação, agora já visando  derrubar a própria república, que o monge santo lhes dissera ser um instrumento do diabo. Em 8 de fevereiro de 1914, numa ação conjunta de Santa Catarina, Paraná e governo federal, o governo atacou o exército sertanejo com um regimento de 700 soldados, apoiados por modernas peças de artilharia e metralhadoras. Obtiveram um certo êxito na empreitada, pois conseguiram incendiar o acampamento dos rebeldes, mas sem causar muitas baixas ao inimigo.

A Guerra dos Pelados

Refugiados num vilarejo chamado Caraguatá, atual municipio de Lebon Régis, os sertanejos se reagruparam e entregaram a liderança do movimento a uma menina de quinze anos, chamada Maria Rosa, apelidada de Joana Darc do Contestado. Semelhante à sua congênere francesa, Rosa era uma menina com dotes especiais, que tinha visões e se impunha pela força da sua fé e do seu espirito místico, o que lheu liderança sobre um exército de 6.000 combatentes.
Várias batalhas foram travadas entre as forças rebeldes e tropas do governo, sem vitórias expressivas de um lado ou outro. Porém, em 9 de março de 1914,  as tropas do governo cercaram e atacaram Caraguatá, mas sofreram uma fragorosa derrota que fez com que mais e mais sertanejos se unissem aos rebeldes.. Assim, a chamada guerra santa, como era chamada o conflito pelos sertanejos do Contestado, tornou-se uma verdadeira revolução, que acabou envolvendo uma boa parte dos atuais estados do Paraná e Santa Catarina. Como os sertanejos costumavam raspar os cabelos, em respeito à condição de monges guerreiros, como eles se intitulavam, as tropas do governo os chamava de “pelados”, razão pela qual esse episódio ficou conhecido como Guerra dos Pelados.
Fazendas eram invadidas, propriedades saqueadas, guarnições e acampamentos do governo eram atacados pelos “pelados”, numa verdadeira guerrilha. Num movimento mais amplo e bem melhor coordenado do que aquele que ocorreu em Canudos, a jovem república de coronéis que o Marechal Deodoro fundara estava com um enorme problema nas mãos.
Temendo que a situação se agravasse ainda mais e saísse do controle, o governo brasileiro designou o general Carlos Frederico de Mesquita, oficial  veterano de Canudos, para comandar uma ação contra os rebeldes. A frente de uma grande tropa, ele  atacou o arraial de Santo Antônio, um dos principais redutos dos “pelados” obrigando-os a fugir para Caraguatá. O reduto de Caraguatá, que antes vira as tropas do governo fugirem, perseguidas pelos revoltosos, também foi desbaratado pelas tropas federais. Com essas vitórias, o general considerou que a a guerra estava terminada, pois os sertanejos haviam sido dispersos, além do que, uma grande epidemia de tifo ocorreu nos acampamentos rebeldes, ceifando um grande número de vidas entre eles. Todavia, eles logo se se reagruparam e se organizaram na localidade de Santa Maria, no norte do município de Lebon Régis, retomando os ataques contra as tropas federais e contra as fazendas da região. Empolgados pelas vitórias obtidas em várias escaramuças, eles tomaram e incendiaram a estação de Calmon; dizimaram a guarnição da vila de São João (hoje Matos Costa), atacaram a cidade de Curitibanos e ameaçaram a cidade de União da Vitória, cuja população abandonou a cidade em desespero. Nessa altura já se falava até que o exército dos “pelados”  estava nas proximidades de Ponta Grossa e pretendia marchar até o Rio de Janeiro para tomar a capital e depor o Presidente da República.
Esses boatos motivaram o envio, pelo governo federal, de uma força de 7000 homens, sobre o comando do general Setembrino de Carvalho. Experiente militar, afeito a combates desse tipo, e bem informado sobre as modernas armas de guerra, sua primeira providência foi assegurar o controle das ferrovias e construir o campo de Aviação de Rio Caçador, para poder operar com aviões, a mais moderna e eficiente arma de guerra, que estava sendo usada na guerra da Europa ( Primeira Guerra Mundial). Essa foi a primeira vez que se usou a aviação em operações de guerra na América Latina.  
Evitando o combate direto, num terreno que os revoltosos dominavam, os federais, foram, pouco a pouco, ocupando os vilarejos em poder dos rebeldes. Com isso foi, gradativamente, cortando as vias de abastecimentos dos caboclos e isolando os combatentes em poucos núcleos de resistência. Com a morte de Maria Rosa, num combate às margens do Rio Caçador, o comando dos revoltosos foi parar nas mãos de um sujeito chamado Deodato Manuel Ramos, vulgo "Adeodato", considerado pelos historiadores como o último líder dos Contestadores. Ele transferiu o núcleo dos revoltosos para o vale de Santa Maria, um arraial que aglutinava cerca de 50.000 homens. Mas com suas fontes de abastecimento cortadas, logo começou a faltar armas, munições e alimentos. Em 8 de Fevereiro de 1915, uma força comandada pelo tenente-coronel Estillac, chegou à Santa Maria. Começou um longo e estafante sítio. De um lado as forças do governo, bem armadas, bem alimentadas, de outro, sertanejos maltrapilhos e famintos, mas dispostos a lutar até a morte.
Em 5 de Abril de 1915, acontece, finalmente, um grande assalto à Santa Maria. Depois de um encarniçado combate, no qual os sertanejos defenderam cada casa com unhas e dentes,  o general Estillac, comandante das tropas federais,  registrou em seu relatório que "tudo foi destruído, subindo o número de habitações destruídas a mais de mil e 5.000 as mulheres que se bateram como homens e foram mortas em combate (…). O número de jagunços mortos elevava-se a 600. Os redutos de Caçador e de Santa Maria foram extintos. "Não posso garantir que todos os bandidos que infestam o Contestado tenham desaparecido, mas a missão confiada ao exercito está cumprida", escreveu o general.
Os rebeldes sobreviventes se dispersaram por muitas cidades da região e não incomodariam mais. Todavia, somente em dezembro de 1915 o último reduto rebelde foi destruído. Mas o líder Adeodato só seria preso oito meses depois. Sua prisão pôs fim à Guerra do Contestado.

Jesse James e a Guerra do Pelados

A Guerra do Contestado, ou Guerra dos Pelados, como ficou conhecida, lembra um outro conflito que ocorreu nos Estados Unidos logo após o término da Guerra Civil. O Governo americano também concedeu a uma companhia ferroviária de vastas extensões de terra no estado do Missouri para que ela construísse uma estrada de ferro naquela região. Para isso ela também teve que desapropriar a maioria dos fazendeiros que já estavam lá estabelecidos . Como se pode imaginar, houve resistência e luta. Só que os rebeldes do Missouri, já esgotados pela guerra civil, que haviam perdido, já que lutaram ao lado dos sulistas, não foram mais longe do que explodir algums trilhos, assaltar alguns trens e causar um bocado de prejuízo á companhia que os expropriou. E o governo americano foi mais inteligente que o brasileiro pois indenizou, de maneira mais apropriada, os fazendeiros expropriados. Mas o que ficou desse acontecimento foi a figura dos irmãos James, Jesse e Frank, que se tornaram os dois mais famosos fora-da-lei do Oeste americano, com direito a dúzias de livros e filmes sobre as suas aventuras. Viraram heróis e se tornaram ricos produtos de consumo. Todo mundo sabe quem foi Jesse James. Já da nossa Guerra do Contestado, são poucas as pessoas que já ouviram falar nela. Isso talvez nos dê uma boa pista sobre as diferenças que existem entre as duas Américas. Enquanto os americanos fabricam e exploram, de todas as maneiras, tranformando os seus acontecimentos históricos em verdadeiras epopéias e seus protagonistas em heróis lendários, aqui na América Latina, tudo é esquecido e relegado a um simples registro nos livros de História. Ótimo que o cineasta Silvio Beck tenha reportado esse episódio da nossa tão pouco conhecida História em um bom filme. E que bom ver o então jovem Stenio Garcia em uma de suas mais impressionantes interpretações da sua carreira.
A Guerra do Contestado, ou dos Pelados, como ficou conhecida, é um momento importante na luta do homem brasileiro por aquilo que ele entende ser seu direito. E nos dá uma boa idéia do que pode fazer um governo sem consciência social, que coloca a serviço dos poderosos a máquina do estado, esquecido de que o seu principal dever é servir ao povo que o sustenta. Tal como em Canudos essa é mais uma nódoa na história da república brasileira, que jamais será apagada.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 01/09/2011
Reeditado em 19/05/2020
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