“Um Lugar no Coração” (Places in the Heart)

“Um Lugar no Coração” (Places in the Heart)


Robert Benton escreveu e dirigiu esse longa premiado e catalogado como drama. Ele nasceu em Waxahachie, Texas, 1932, e talvez em virtude disso a ação se passe em 35, na mesma cidade. Há um curioso truque no roteiro – desliza que nem manteiga e tem mais acidentes que uma cachoeira finlandesa. A vida na ótica de Benton não desfruta de um minuto de sossego e deixa do lado de fora qualquer tipo de fanfarra. Talvez por isso praticamente inexista uma trilha sonora, a não ser no momento em que Sally Field dança com o filho, e mesmo assim, quando ela dança, sua cabeça está no marido.

Benton já havia se celebrizado com "Kramer vs. Kramer" (1979) e "Bonnie and Clyde" (1967), com argumento e roteiro, aqui ele se mostra um insofismável construtor de planos. Num primeiro instante, a ausência de música parece subtrair o que se move na tela aos ouvidos acostumados com o baticum constante entre uma pincelada cinematográfica e outra. É a famosa manipulação. “Places in...” parece desconhecer esse artifício.

Começa com Sally servindo o café da manhã, a vida sorria para eles, uma típica família texana em plena Depressão, período em que 10 milhões de desempregados perambulavam pelas estações climáticas atrás de um pedaço de pão. Dez minutos depois o marido está morto, vitimado por um jovem embriagado que empunhava uma arma. “Pessoas não matam pessoas, armas matam pessoas”. Esse slogan foi usado há um par de anos atrás no hemisfério norte. Querendo, sempre existe a possibilidade de formular pensamentos.

Para os cinéfilos que tiraram suas carteirinhas de amadores de filmes há três décadas, vale ver o desfile dos famosos de lá, quando em plena juventude: Lindsay Crouse, Ed Harris, Amy Madigan, John Malkovich, Danny Glover.

Outro truque da produção é que a princípio ela parece vender um quê de água com açúcar, talvez pelo sorriso cativante de Sally. Todavia ali quaisquer vestígios de oásis e candura bateram em retirada na hora em que o diretor mandou rodar a primeira cena.

A mágica de Benton está em mostrar que as coisas não param, não avisam e tampouco alardeiam. Elas simplesmente acontecem, como água deslizando sobre pedra, sem pontos de exclamação no fim da frase.

Dez da manhã Sally perde o marido, ao meio dia dois caminhões de roceiros exibem o corpo sumariamente linchado do jovem infrator, à tarde seu cunhado Ed Harris se encontra com a amante Amy Madigan, á noite todos se juntam no velório e tarde da noite Danny Glover bate à sua porta por um prato de comida. Na manhã seguinte o gerente do banco explica a situação financeira e na manhã depois dessa ele aparece com o sobrinho da mulher, insinuando que a casa pode virar uma pensão e seu primeiro inquilino já está presente – o então cego e ex-combatente da Primeira Guerra, John Malkovich.

A personagem de Sally Field foi aquinhoada com o dom dos sobreviventes – presença de espírito, e deve ter inspirado milhões de mulheres mundo à fora em 1984, data de lançamento do filme e época em que o feminismo rugia a plenos pulmões pelas Américas e Europa.

“Quarenta acres e uma mula”, nome da produtora do cineasta Spike Lee, que para os afro americanos conscientes reserva sua cota de significado. Quando da abolição nos USA, o estado da Flórida concedia aos alforriados 40 acres e uma mula. Benton se inspirou nisso dando à sua protagonista a mesma medida, e Glover diz para ela: vamos plantar algodão.

Num assim assim a casa da viúva se converte em lar dos desvalidos, Glover fala sozinho e resmunga, as crianças vão com o vento, Malkovich empalha cadeiras e ouve discos para cegos, Sally toca seis instrumentos e o inesperado continua soprando a cantiga que derruba os fracos.

Os brasileiros que já viram um bóia fria, ao vivo ou na telinha, não vão se espantar com a exatidão da abordagem de cinema na hora da refeição dos catadores de algodão.

Lá e cá esse filme não muda.

“Places in...” comunica bem no fundo, e numa fração de segundos, que eles poderiam ter um trator, plantar mais e perseverar nessa empreita, mas Glover vai embora graças a eficiência da KKK de Waxahachie e Sally fornece para ele o maior presente do universo – a consciência de seus feitos. “Nunca se esqueça de que quando você chegou esse era um lugar inútil e você o transformou”.

Termina como todos os aspirantes a Nova Era desejam que termine – ao som da mais poderosa das orações, numa mística comunhão entre mortos e vivos. Mesmo porque, não termina nunca.
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 30/08/2011
Reeditado em 17/09/2021
Código do texto: T3190949
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.