Bourne e seu último embate
Não tenho nada contra filmes de ação, pelo contrário, até gosto muito deles. Mas daqueles que há realmente uma história por trás, algo que dá o suporte para a ação. Os filmes atuais parecem estar perdendo esse suporte, vão logo direto á ação e o roteiro que se dane. Mas existe algums que se salvam.
Quando se fala em filme de ação ou mesmo de espionagem, dois personagens vêem á nossa mente: James Bond e Jason Bourne. Falaremos sobre o agente 007 em outra ocasião, por enquanto vamos nos concentrar no desmemoriado agente Bourne.
É importante lembrar que Bourne, assim como Bond, é fruto da literatura. Foi o escritor Robert Ludlum que o criou no final da década de 1970, aliás, o livro a Identidade Bourne já foi adaptado para o cinema antes, tendo inclusive o ator britânico Richard Chamberlain como protagonista.
Em 2002, contudo, há uma nova adaptação. Essa se baseia parcialmente no livro de Ludlum, afinal, a Guerra Fria já tinha acabado há uma década. A premissa principal, no entanto, continuava: um homem sem memória é perseguido por espiões e pouco a pouco descobre que foi um agente treinado para matar sem dó nem piedade.
Bourne (interpretado por Matt Damon) seria seu codinome e, no filme, ele faria parte de um projeto (Treadstone) criado para formar matadores obedientes e impiedosos.
Na sequência, Supremacia Bourne, nosso agente tenta fugir do seu passado morando na Índia com a mulher que ama, Marie Kreutz (interpretada pela ótima e linda Franka Potente). Mas, ele é acusado de mais crimes, outros espiões vão caçá-lo agora e nessa fuga ele acaba por perder seu amor. Então, Bourne passa a ser movido pela vingança.
Mas isso tudo foi apenas uma introdução, já que vamos nos deter no último filme da franquia, Ultimato Bourne (2007). Por quê? Neste filme há todo um enredo cheio de becos e esquinas, como há muito tempo não via em algum filme de ação. Por isso se tornou um de meus favoritos.
Enquanto nos outros filmes Bourne descobriu ser um matador frio de uma agência de espionagem, aqui ele descobrirá como ele se tornou isso. O filme começa onde o segundo terminou: com Bourne ainda na Rússia, saindo do conjunto habitacional onde morava a filha de uma de suas primeiras vítimas. Na fuga ele começa a ter visões do seu treinamento. Essa é a promessa desse filme: falar mais sobre o começo de tudo.
Bourne continua com seu desejo de vingança, mas não contra os seus comandantes no projeto Treadstone (Brian Cox e Chris Cooper), mas para quem começou com seu tratamento. Aqui, como no primeiro filme, ele está procurando saber mais sobre seu passado, diferente do segundo onde ele tentava fugir dele.
Um jornalista britânico (Paddy Considine), através de uma fonte dentro da CIA, descobre um projeto muito maior que Treadstone e o envolvimento de Bourne com ele. Seus relatos publicados na imprensa chamam a atenção de Bourne e também de Noah Vosen (David Strarthaim), o comandante do tal projeto. Na tentativa de conseguir mais informações, Bourne entra em contato com o jornalista, mas acaba testemunhando a execução do repórter pelos homens de Vosen. A presença de Bourne no recinto é o pretexto para mais uma caçada contra ele.
Para isso, Vosen chama Pamela Landy (Joan Allen) que já havia, no filme anterior, perseguido Bourne tentando esclarecer falhas no projeto Treadstone. Landy tinha percebido, no final emblemático do filme anterior, que Bourne foi apenas uma marionete e os verdadeiros culpados tinham se livrado da responsabilidade de seus atos até o momento. Isso provocou uma certa simpatia para com o agente. A partir do momento em que ela percebe que Vosen está indo longe de mais na tentativa de impedir que o sombrio projeto seja divulgado, Landy passa, inclusive, a colaborar com Bourne, extra-oficialmente, claro.
E o que seria tal projeto? Chamado de Blackbriar, esse projeto seria uma ampliação do projeto Treadstone: um time de assassinos treinados para atuar em todo o mundo matando alvos potencialmente perigosos. E este projeto, ao contrário do anterior, contaria com um enorme apoio da tecnologia: ele pode invadir qualquer sistema de segurança, rastrear qualquer tipo de ligação e os matadores, inclusive, recebem as ordens para matar através do celular.
E as ordens para matar não precisam contar com o apoio do Congresso ou do presidente. Essa seria a grande "sacada" do projeto: o comandante da operação não teria que prestar contas á ninguém. Vosen, em certa hora, explica o motivo desse projeto ter sido aprovado pelo diretor da CIA (Scott Glenn): assim se corta o tempo perdido com a burocracia em situações de risco. O objetivo do projeto é deter o terrorismo, daí ser essencial essa operação ser quase onipotente.
Na minha opinião, esse ponto do filme é muito proveitoso e demonstra a sagacidade dos roteiristas. Enquanto a trama original de Ludlum ocorria na Guerra Fria, a franquia de filmes vive um outro momento onde o maior medo vem justamente do terrorismo. Mesmo assim, esse não aparece no filme. O que vemos são apenas agentes tentando acobertar seus erros e limpar a sujeira de seus superiores. O maior inimigo de Bourne não é Osama Bin Laden, mas Noah Vosen, um agente da CIA.
Com isso, o roteiro está fazendo uma crítica ao poder oculto que o governo Bush construiu. Na tentativa de se defender do terrorismo, algumas instituições tornaram-se super-poderosas a ponto de invadir a privacidade de muitos cidadãos (como a operação Blackbriar faz ao invadir ligações e sistemas de vigilância). E em muitos momentos elas foram usadas para interesses particulares, para beneficiar certas pessoas ou para esconder determinados assuntos. É esse lado obscuro dos EUA pós-11 de Setembro que Blackbriar representa e é esse lado que os americanos tentam se desvincilhar agora. Na fala de Landy, "não foi por isso que lutamos".
Talvez o momento que mais defina isso seja no final quando Bourne encontra o responsável por seu treinamento, Dr. Albert Hirsch (Albert Finney). O super-agente encontra seu criador e pede explicações para as torturas que sofreu para transformá-lo em um assassino frio e descobre a triste verdade de que ele sabia disso tudo e se ofereceu para ser a primeira cobaia. O teste final é matar um rapaz que ele mal conhece apenas porque Hirsch ordenou. Ele reluta, mas Hirsch lembra que é preciso ser duro como os terroristas para vencê-los e que isso tem de começar ali, naquela sala, nesse instante. Ele atira no rapaz e nesse momente nasce Bourne, o matador.
Pode até ser exagero, mas gosto de comparar Hirsch com Bush. É como se Bush desse uma arma para os norte-americanos e pedisse para eles atirarem contra o Iraque, por exemplo. Embora Saddam Hussein já fosse conhecido do povo norte-americano e tivesse sua carga de excessos e massacres, em relação ao atentado das Torres Gêmeas era inocente. O desejo de vingança que o povo norte-americano sentiu foi usado pelo governo para conseguir mais petróleo. Os sentimentos de quem se emocionou com o atentado foram manipulados, assim como Hirsch manipula o patriotismo de Bourne.
Agora, meus amigos, vamos aos aspectos técnicos do filme: a direção é do britânico Paul Greengrass que se tornou conhecido pela técnica da "câmera tremida", aquela que acompanha os movimentos de ação, mas de maneira manual, o que provoca a sensação de que estamos lá participando de tudo. Greengrass durante toda a franquia usou e abusou dessa técnica. Talvez esse seja o grande motivo da admiração da crítica por seus filmes (aliás, Ultimato Bourne foi indicado ao Oscar e venceu nas categorias sobre edição de som). As cenas de perseguição e de luta são ótimas, resultado da boa equipe contratada e da colaboração do diretor (os ângulos que ele utiliza é, em boa parte, responsável pela inovação também).
Quanto ás atuações, também tiveram bons resultados. Matt Damon é um ator talentoso, mas nesse filme (na franquia como um todo) ele não consegue desenvolver bem esse talento. Talvez o personagem não ajude (um ex-assassino frio com amnésia...), mas pelo menos ele não apela para a canastrice, como muitos protagonistas de filme de ação costumam fazer. Enquanto o personagem de Damon tem um embate contra toda uma agência, algo como um poder invisível, a personagem de Joan Allen tem um inimigo muito mais palpável e próximo na figura de Vosen. Allen consegue manter um equilíbrio: ser racional sem ser fria, ser afetiva sem ser piegas, ser inteligente sem ser arrogante. Talvez isso crie uma simpatia para com a luta de sua personagem contra o comandante da operação Blackbriar.
David Strathaim faz um vilão que já se tornou lugar comum no cinema e na literatura: o burocrata do mal, um homem geralmente impotente que se enebria com a possibilidade de deter o mínimo de poder. No seu caso ele tem o máximo de poder que se pode esperar de um burocrata: a decisão de matar ou salvar alguém. Mesmo assim, volta e meia, demonstra ser um pedante e até irresponsável. É um tanto difícil construir esse personagem sem cair muito no clichê, mas para Strathaim foi um trabalho fácil. Vosen não é tão "odiável" como Conklin, o vilão do primeiro filme. O que se espera é que em filmes de ação tenha-se vilões emblemáticos, cativantes ou detestáveis. Nesse caso é diferente. O inimigo de Bourne não é exatamente Vosen, ele é apenas o "testa-de-ferro". O grande vilão continua sendo a operação como um todo e como ela não possui um rosto explícito ela se torna uma oponente formidável.
Falando em vilões, Albert Finney nos apresenta um personagem, diferente dos demais da franquia, sinistro. As suas aparições, ainda que poucas, são impactantes. Há ainda a agente Nicki Parsons, interpretada por Julia Stiles, que durante toda a franquia teve um papel menor como consultora da saúde dos agentes, mas aqui ganha um destaque maior. Sua função foi sempre meio obscura. Inicialmente pensei que ela tentaria preencher o lugar do interesse feminino de Bourne, mas o que se cria entre os dois é uma amizade. Parsons revela o motivo de estar ajudando Bourne : ela se identifica com ele, pois passou pelo mesmo tratamento. Tanto Bourne quanto Parsons estão tentando voltar a ser humanos. Julia consegue criar essa ponte, essa ligação entre os dois.
Acredito que essencialmente este filme é como uma das tantas perseguições á Bourne: entramos em vias expressas, depois em vielas, sempre á procura da ação. O enredo nos proporcionou isso tudo, ele nos forneceu essas avenidas, os carros, os becos. Isso tudo foi cimentado com uma boa história que possui até um viés político. A técnica tem seu peso também, mas a história é o que nos envolve. O final parece "batido", afinal Bourne sempre consegue sobreviver e desmontar a organização que o persegue, é um de seus defeitos. Mas não devemos com isso esquecer de suas vantagens. O desenvolvimento da história consegue ser cativante e inovar em muitos pontos. E, com isso, acredito que a trilogia não poderia ter acabado melhor.