“Tempo de matar” (A Time to Kill)

“Tempo de matar” (A Time to Kill)

 

 

Pode olhar dentro do parêntese acima que a tradução está correta. E mais: há um conto de fadas embutido na obra – a de que um caso como esse iria chamar a atenção de autoridades, público e mídia a ponto de ser levado a cabo com o justo holofote. Quaesquaesquaes.

 

O Framboesa de Ouro 1997 (EUA) colocou esse roteiro como o pior do ano, entre os que faturaram mais de 100 milhões de dólares. Dadas situações, é sempre o caso de dizer: perdoai-vos, pois eles não sabem o que vem pela frente. Ademais, quem o assina é o próprio autor e se “O Tempo...” está datado, a discussão sobre racismo, preconceito e justiça continua aberta e pelo visto longe de ser esgotada.

 

Diferente do caso Realengo e muito próximo do caso Candelária, o autor do livro John Grisham praticamente convida o espectador a aprovar a justiça aplicada aos dois rapazes. Começa pelos lay-outs da dupla, hábitos e comportamentos e pelo crime brutal que cometeram – estupro seguido de intenção de morte contra uma menina de 10 anos. Essa menina é filha de Samuel L. Jackson, que num piscar de olhos executa os rapazes.

 

Ocorre que Grisham escreveu esse tratado nos USA, local onde existem e atuam chancelas como: Supremacia Branca, Ariana, KKK, etc., esse público desaprova a ação de Jackson. Não em virtude de um posicionamento moral, mas devido ao matiz da epiderme.

 

O roteiro informa aos interessados que brancos vivem fazendo isso e saem impunes.

 

“O Tempo...” é a primeira obra desse autor, publicada em 1989, início do caminho que o levaria ao presente como o sexto mais lido na América. Ele fecha o texto com a melhor observação que se poderia fazer para um júri caucasiano: imaginem se essa menina fosse branca.

 

Joel Schumacher – referência há muito, assina a direção tatibitati de 1996 com toda a clicheria pertinente na época, e se o caldo em dado instante mostra laivos puídos em momento algum vê-se um desastre de direção.

 

Matthew McConaughey protagoniza como advogado de Jackson, Kevin Spacey como o promotor, Sandra Bullock linda (linda é pouco), como o anjo milionário que caiu do céu para dar assistência a causa aparentemente perdida, Oliver Platt, o amigo também advogado, toda a família Sutherland (pai e filho) Donald e Kiefer, e, saiba, nas obras de Grisham personagens abundam como café em terra roxa.

 

John Ray Grisham Jr. nasceu em 1955 e como ex-político e advogado aposentado ele conhece bem os meandros da lei e a questão da impunidade em vilarejos e ou pequenas localidades como a abordada no filme, palco presumível para absolvição imediata dos dois facínoras. Samuel L. Jackson, enquanto personagem, também conhece, sobretudo na carne. Por isso ele não pensou duas vezes.

 

A questão do racismo abordada soa, no agora, como uma ferida em processo de cicatrização ao passo que o item impunidade permanece feito uma chaga escancarada. Já o que se conhece por lei de Talião baila como a discussão central dissimulada, considerando isso um adianto, pois o grosso insondável do cinema feito, desde a Califórnia ao Oceano Índico tem raízes fortíssimas no talonário do olho-por-olho.

 

O perpetrador desta trágica tolice em Realengo facilitou o caminho da justiça ao se suicidar. Imagine se ele estivesse vivo.

Cantagalo, infelizmente, integra o panteão das vergonhas nacionais e é de se conjeturar sobre aquela estatueta de uma mulher de olhos vendados segurando uma balança, isso porque casos semelhantes tem surgido, são filmados e documentados, mas não se vê a opinião popular se manifestando a respeito. Nesse aspecto, o conto de fadas A Time to Kill se manifesta.

 

Grisham pode ser bom exemplo para as várias oficinas literárias em curso na cidade. Ele está longe de deter o brilhantismo de C. D. de Andrade (todos estão), mas fez um trabalho honesto e o enriquece com personagens. Há a secretária do velho advogado, que foi sua amante. Ela tem um marido, que morre. Um dos assassinos tem mãe e um irmão (Kiefer Sutherland). Samuel é casado com Gwen Hailey, que por sua vez freqüenta uma igreja e há o pastor, ligado a outros pastores e advogados interessados no caso. São chamados de Esquadrão da Morte visto que seus clientes se tornam mártires da causa racial e sempre terminam na câmera de gás ou correlatos. Chris Cooper, como o policial que leva um tiro sem querer do amigo de infância Samuel, e por conta disso tem a perna amputada. Patrick McGoohan, o juiz pintor. O próprio protagonista Matthew, casado com a Ashley Judd. Assim vai.

 

Nos cursos universitários de literatura é comum, faz parte do show, ensinar que durante a narrativa um ou mais personagens segurem informações vitais. Grisham fez o seguinte: não escondeu nada, está tudo ali, previsível, ou se preferir às claras, mas deixou para o final duas coisas: o diálogo com Jackson e o programa Imagine.

 

Samuel diz para o seu advogado, na noite anterior ao veredicto: nem vem que não tem, você não me vê como homem, como um ser humano. Você me vê como um negro. Por isso eu te escolhi. Porque você é um deles, pensa como eles e lembre-se que eu serei julgado por eles.

 

No discurso final, Matthew conta com detalhes o que aconteceu com a menina Tonya, que após o estupro e outras coisas foi jogada de uma ponte, dez metros abaixo, e que até tiro ao alvo com latas de cerveja cheias fizeram nela. Depois da narrativa, ele simplesmente pede ao júri: agora, imaginem que ela seja branca.

 

“A Time...” praticamente termina aí, embora a lição permaneça intacta nas infinitas possibilidades de discriminação que ocorrem a cada 2 segundos no globo.

 

Pode-se dizer: imagine se ele usasse um cocar, ou um turbante, uma túnica, um boné e uma bermuda, etc.

 

Matthew McConaughey levou o MTV Movie Awards na categoria melhor ator revelação, ele tem uma espécie de mentor, Donald Sutherland, que pondera: esse é um dos raros casos em que a justiça será feita pouco importando qual seja o veredicto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 11/04/2011
Reeditado em 11/01/2022
Código do texto: T2902551
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