“Prenda-me se for capaz” (Catch Me If You Can)
“Prenda-me se for capaz” (Catch Me If You Can)
Talvez tudo não passe de uma brincadeirinha desse mágico maior alcunhado Spielberg, capaz de domesticar as frações de um modo tal que o mundo dos sonhos se torna uma aprazível realidade injetável nas consciências que amam a harmonia das frações se amalgamando com outras, de modo tal que o todo esteja em eterna fluência.
Sem falar que as americanas se derreteram com DiCaprio e comenta-se em inglês que ele é um “fast talker and a slick operator”. Trocando em migalhas, mulher adora um fanfarrão.
“Catch Me... ” foi lançado em 2002 e narra a história autêntica de Frank Abagnale Jr., que entre 1966 e 1969 levantou 4 milhões de dólares colocando em prática o que hoje se chama 171. Todavia, como a coisa toda aconteceu, sob o olhar de Spielberg não cansa marinheiros de segundas, terceiras ou quintas viagens. O quadro do mágico recria a galáxia dos tons pastéis e da musicalidade tênue como um fio de água. Dois ingredientes que andam como mil maravilhas. Juntas.
DiCaprio/Frank saiu de casa num repente e num rompante emocional desses que arrebatam. Ele vinha de uma família minimalista, pai&mãe&filho, o núcleo implode e no momento em que Frank Jr. vai para a estrada entra num turbilhão que o leva a descobrir, aos 16 anos, que todas as portas se abrem ao toque da audácia. A audácia de Frank chamava-se contravenção. Existem piores.
Spielberg não fez um filme sobre assassinos, glamurisando-os, nota de 1 em Hollywood, ele narrou a trajetória de um pequeno fenômeno que estaria fadado a destino pior não fosse outro item extraordinário, o agente especial do FBI encarregado de rastrear cheques sem fundos na realidade pré-cyber, Tom Hanks, mostrando que a própria vida exibe perfeitos contrapontos.
No natal de 1967 DiCaprio liga pra ele. Hanks é o homem no centro de si mesmo, sofrendo reveses e agüentando firme, DiCaprio é um menino à mercê de um furacão interior. Sua fragilidade será, por hora, nota dominante e força motriz.
Há que se dizer duas coisa sobre “Catch Me...” - a mordacidade velada e a superficialidade do enredo. O primeiro item alfineta fundo valores e valores, seja na postura da mãe de Frank (a atriz francesa Natalie Baye) perante o(s) casamento(s), e vide a luz que Spielberg joga sobre ela na cozinha, logo após o adultério, quando oferece ao filho sanduíches e notas de 5 dólares, ou na noiva que ele arruma em Atlanta, há um sino soando na direção do incesto (Martin Sheen, pai dela, que a coloca no colo quando já é mulher feita e que pagara seu aborto dois anos antes).
Como tudo não passa de uma grande fajutice, desde a mais remota era o mote prega “as coisas não são o que elas são e sim o que aparentam ser”, DiCaprio indaga para a moça: sua vida estaria resolvida se você se casasse com um médico? Afinal ele não é médico, mas quantas vidas deixaram de ser resolvidas na falta de aparência ou na ilusão da mesma?
O falsário adolescente e o paternal agente Hanks flutuam sob o cinema mágico de Spielberg, que jorra como água clorada de piscina esbanjando truísmos de modo quase displicente. Truísmo significa verdade tão evidente que não é necessário ser enunciada.
Além destes, estão ali o sonho americano em fatias, a torcida pelo herói imberbe, a manipulação barata do diretor em várias situações de baixa explicação, mas no final nada disso importa, pois miraculosamente por outro lado, como se um círculo tivesse lados, Spielberg nos brinda com uma qualidade cinematográfica de raro paralelo.
Com uma aceitável dose de romantismo pode-se enquadrar Frank como o pré hacker que fez do sistema gato e sapato e, a maneira dos hackers de hoje, foi contratado pelo sistema para guardá-lo de outros piratas.
O pai da Análise Transacional, o judeu canadense Eric Bernie, já estava pronto para decodificar sua grande descoberta – os 3 estágios do ego – e ainda não sabia. Eric atingira a patente de capitão durante a Segunda Guerra e apenas por hobby ele utilizava as horas vagas descobrindo a profissão de desconhecidos através de conversas triviais. Com o fim da guerra e o retorno as suas atividades no consultório, a soma de todas aquelas conversas, logicamente unidas a formação acadêmica, levaram-no no caminho de seu tratado.
Frank Abagnale estava em cana há um par de anos quando, por acaso, ele pede para analisar um caso de fraude do eterno mentor e amigo. Hanks exibe para ele o cheque e se diz às escuras. Abagnale matou a charada num piscar de olhos. Ele já estava pronto. Seu aprendizado se deu na Absoluta Universidade da Prática, que durou, se tanto, 20 meses. Sentenciado em 69 e alforriado sob custódia em 76, Frank tornou-se um dos maiores, senão o maior especialista em fraudes bancárias do seu tempo.
Spielberg, grosso modo, conta a história desse aprendizado, com bastante confete e serpentina e uma iluminação à prova de falsificações.
Também na forma do grosso modo Bernie identifica os 3 estágios do ego como: o pai critico, (aquele com o dedo em riste), a criança (que só se mete em confusão) e o adulto. Presentes em todas as películas.
Christopher Walken faz o pai de Frank Jr. e o olhar dele para o filho, quando este lhe diz que quer parar, expressa o olhar de quem conhece profundamente a imutável verdade. E a verbaliza: como parar? Ninguém pode parar.
Baseado no livro de Frank Abagnale e com fotografia de Janusz Kaminski, a obra em pauta, no mínimo, também nos diz que a civilização norte americana não deixa dúvidas quanto a sua singularidade, senão através de seus artistas, pelos contraventores que produz.