“Questão de Honra” (A Few Good Men)

“Questão de Honra” (A Few Good Men)

 

 

 

 

Essa peça de Aaron Sorkin serve como diversão educativa desde o dia em que foi lançada (1992), sendo especialmente indicada para todos os territórios que ainda façam uso de fardamentos. E permanece válida em todos os quadrantes da nossa terceira dimensão (que migra para a quarta) até segunda ordem, considerando que nossa terceira dimensão não evolui por igual em toda a sua extensão.

 

Rob Reiner (“Harry&Sally”) dirige Tom Cruise, Jack Nicholson, Demi Moore, Kevin Bacon, Kiefer Sutherland e mais três ou quatro pares de nomes que evoluíram de lá pra cá, com exceção do cultuado J.T. Walsh, que de lá pra cá mudou de plano.

 

A peça de Sorkin continua servindo porque trata com bastante inteligência as querelas dos humanos e suas sentenças, a permanência no erro e a tentativa de acerto para salvar uma vida, no caso duas vidas.

 

Hipoteticamente dizendo, um soldado da base americana de Guantánamo (Cuba) fora mal diagnosticado pelo médico (revelação que surge tênue como um balouço de palmeira na primeira metade do episódio), e por conta disso seus deslizes como taquicardia, fadiga, mal estar, falta de resistência bastam para taxá-lo como um sem vergonha e daí sofrer os corretivos à altura. Sorkin não tem nada de bobo. Ele joga essa informação como um detalhe a mais e mira noutros alvos. Raramente a boa escrita é óbvia.

 

O título original ludibriaria o incauto espectador saxão, pois A Few Good Men (uns poucos homens bons) são na verdade os réus, aparentemente os carrascos do falecido em Guantánamo.

 

A honra do título traduzido remete aquela com H maiúsculo e portanto utópica, ideológica, onírica. Dados a serem considerados nos quadrantes que sequer cogitam o assunto.

 

Tom Cruise pré musculação perfeito no papel do advogado do Bem (advogado dos réus), e Nicholson (o de sempre), perfeito como o militar do Mal, entretanto as falas de ambos os lados reúnem pontos de vista muito sólidos sobre seus posicionamentos.

 

Para facilitar a digestão, eis um esquema funcional: a promotoria oferece 20 anos de prisão para os réus, afinal trata-se de um assassinato, Cruise não aceita, depois 12 anos, Cruise pensa no assunto, depois 2 anos com condicional em 6 meses. Por trás do pano está Demi Moore como a mola mestra dizendo para o advogado principal que há algo errado e que os carrascos são inocentes. Ocorre que a promotoria quer evitar o julgamento, daí as negociações, e os acusados estão na fita do ou vai ou racha: apenas cumpri ordens, se errei devo aceitar a pena seja ela qual for, do contrário nada devo, já que devotei minha vida ao código dos fuzileiros.

 

Rob Reiner é um diretor ponta firme. A sacada de apresentar logo nos créditos iniciais as manobras que um soldado faz com seu rifle comunica bem e sem entrelinhas a relação da farda e de quem a veste.

 

O lema ou código dos U.S. Marines é “Unidade, Tropa, Deus, Pátria”. Repare na hierarquia e pondere que a rapaziada sequer pensa ao entoar esse cântico. A justificativa repousa na seguinte equação: sem isso, a civilização desmorona e ai daquele que ousa desobedecer uma ordem, e a ordem dada, extra oficialmente, era a de que se aplicasse uma punição naquele considerado a vergonha do regimento.

 

Interessante notar como essas pessoas estão jovens - Cruise, Moore, Bacon, etc., e como é justamente a sua juventude quem empunha a bandeira da justiça. Todavia, a questão de uma juventude engajada, usando a força natural de sua idade para construir e defender soa tão utópica quanto a honra traduzida, pelo menos para os padrões 2011. Enfim, idealistas, como fomos um dia...

 

Outro dado interessante, e só para constar nos autos, é a observação de que Cruise foi um ator muito superior ao que apresenta hoje.

 

Diferente da corte civil, a corte marcial utiliza 9 jurados. Uma mera diferença numérica, se observada pela ótica de um grande jurista, que um dia expressou que julgamentos envolvendo júris não convivem na estrada da lei escrita e sim na distribuição de culpas. Cada jurado embute dentro de si seu próprio personagem para colocar na forca.

 

Hollywood sempre trata com a exatidão necessária – aquela que nossos sentidos clamam – os filmes de tribunais.

 

A boa flexibilidade de roteiro&direção colocou diversos itens legais fora da corte - - no apê de Cruise, no refeitório, nas entrevistas com os réus, nas ruas. No que tange à comunicação do todo, as partes foram muito bem espalhadas.

 

“Questão...” encontra traduções rápidas em toda parte. Recentemente ocorreu em Sampa a revista de uma escrivã por um delegado e outros policiais. Os envolvidos no caso alegaram que aquilo era um flagrante e contra um flagrante não há argumentos. Calma lá. A revista, que inclusive foi filmada e disponibilizada na web, teria de ser feita por agentes femininos da polícia. Ocorreu uma clara violação do código de conduta e mesmo assim o caso foi arquivado pela corregedoria. Até o momento em que uma promotora surgiu diante das câmeras e disse: calma lá, os direitos da escrivã foram violados. Descontando as proporções, essa promotora fez o mesmo que Tom Cruise nas cenas finais, quando ele induz o peixe Nicholson a morrer pela própria boca. Foi um ato de coragem e uma inspiração válida em qualquer pretensa democracia - lutar pela justiça ainda é uma questão de honra.

 

 

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 21/03/2011
Reeditado em 24/01/2022
Código do texto: T2861761
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