Nosso Lar
Uma experiência extremamente frustrada, um filme simples, catequizante, de diálogos pobres e diretos, além de uma cenografia bastante fraca. Uma perda de tempo, ao meu ver, e por isso vamos às impressões sobre esse fracasso cinematográfico. Não estou discutindo, deixo bem claro, a veracidade da doutrina espírita, mas devo dizer que como roteiro para filme esta abordagem foi uma grande porcaria.
Pra começar, o Umbral. Que lugarzinho mais dantesco, com cara de que foi feito por um artista barroco de segunda e de figurino muito bobo, uma espécie de Thriller terceiro-mundista. Os espíritos desgarrados são muito pouco expressivos e, por isso, no pouco tempo que têm, não conseguem criar um grande impacto. A passagem de André pelo Umbral é rápida, sua jornada é bem leviana e não causa mais do que breves impressões de insatisfação.
O resgate de André e sua entrada na cidade que chamam de “Nosso Lar” é a segunda etapa do martírio. Primeiro, as fortificações da entrada da cidade. Arquitetura medieval, ar de antiguidade, pra criar aquele clima de imponência. No interior, os cenários são claros, as roupas leves e sem marcar as formas, como se fossem hippies de uma propaganda de sabão em pó. E não é só aí que fica o branco. Ao que parece, todos os espíritos relaxam ouvindo música erudita européia, tocada por violinos e piano, sentados na grama de um jardim completamente entediante. Entre a massa de brancos e morenos, alguns poucos negros pra fazer fita, como se fosse apenas esse punhadinho de representantes da cor que vemos em nossas vidas, todos os dias. Talvez nas cidades do Sul, mas de São Paulo pra cima as coisas não ficam tão na media dúzia.
Um momento “A Vila” marca o progresso da trama. Quando a jovem foge da cidade em direção às florestas escuras e frias, sua derrocada e salvação deixam claro que Nosso Lar é uma ilha cercada pelas trevas, espaço iluminado, paraíso em meio ao caos. Mais uma vez, o texto romântico pulsa da forma mais simples possível, informando muito mais do que encantando, doutrinando muito mais do que libertando.
Uma das coisas mais entediantes num filme que adota a doutrina espírita como base para a trama é a tendência ao drama barato. A humanização dos espíritos não é o que me incomoda, ao contrário, é possível obter vários matizes desta relação, a que se estabelece entre a matéria e o espírito idealizado. Uma das formas desta humanização do divino que sempre me encantou está presente na mitologia grega. Nesta, diferente daquela, a humanização conduz às paixões, aos arroubos, aos momentos apoteóticos, aos erros. Em “Nosso lar”, a humanização do divino alimenta o drama da separação, mesmo quando ela é reconhecidamente passageira. Tudo é pesado, carregado de culpa e uma solidariedade melancólica, uma doçura temperada com o sal de lágrimas pré-determinadas.
Outro exemplo do romantismo diabetizante do filme é a cena em que descobrem que André Luiz escreve textos sobre suas impressões da morte. Emmanuel os descobre e fica sensibilizadíssimo com aquela lírica pastel, melosa e bastante confessional, uma conclusão com ares de diário de um adolescente. Não existe, sequer, um brilhantismo estrutural, nem imagens ou um ritmo original, não, o texto é simplesmente a constatação da doutrina espírita e o regozijo uma simples verificação da lobotomia espiritual.
O crescimento de André Luiz é provado quando este supera o segundo casamento de sua ex-mulher, oferecendo cura aos pulmões do atual marido. Seu sacrifício o cobre de glórias, sua saída do mundo dos vivos é chorada pela empregada que o vê, pois é a criada negra, personagem exótico, assim como é o cão, que também o vê. São as criaturas inocentes e dignas deste dom, o de ver pessoas mortas.
O filme termina como se consegue vislumbrar desde cedo: André era um outcast no mundo dos vivos e dele se despediu pra dar continuidade a seu lado rebelde no paraíso. O período de adaptação e aceitação da realidade estão vinculados ao progresso da protagonista no plano espiritual, promovendo o enaltecimento da doutrina por meio da palavra e do exemplo. Ao sensibilizar as esferas mais altas do mundo espiritual, André Luiz passa a representar a promessa humana de uma pós-vida com a qual as pessoas podem se identificar.
Um texto muito bom, que ilustra esse processo romântico de jornada, que trabalha com esferas hierarquizadas de poder dentro da estrutura social, que aborda a saudade e outros sentimentos humanos bastante representativos, é o romance “Todos os nomes”, de José Saramago. Leiam, vale a pena. E aos que gastaram dinheiro vendo esta produção cinematográfica brasileira, bom, fica um consolo: se existe culpa e punição, essa galera vai arder no inferno pela incrível falta de tato e bom senso pra gastar dinheiro.