O Cheiro do Ralo
Opondo valores de uso e valores de juízo, podemos observar uma série de construções simbólicas no mundo social. Objetos úteis dividem sua presteza com representações mil, compondo o vasto quadro fetichista da atual sociedade de consumo.
Fetiche é feitiço, o poder exercido pela coisa sobre o indivíduo, por isso sempre muito específico em cada relação estabelecida. É uma troca, é comunicação, instante de mútuo investimento: enquanto um oferece suas características sensíveis e seu potencial representativo, multiplicando o poder de uso, o outro oferece a atenção, o ritual, suas energias e crenças.
Um destes, mais significativo para a cultura brasileira, é a bunda. As nádegas exercem uma forte influência e grande fascínio aos brasileiros. Não que os seios, as coxas e demais partes do corpo feminino não o façam, mas existe uma construção ideal da bunda, um investimento midiático pesado para que este símbolo se torne, de fato, "preferência nacional". Ao redor desta influência existe o Mercado. Biquinis, marquinha de sol, tatuagens, adereços, investimento técnico no desenvolvimento de produtos acessórios, etc.
O "Cheiro do Ralo" trata da coisificação e da consequente fetichização dos objetos comprados e vendidos na grande São Paulo. É obra de Heitor Dhalia, cineasta que bebe de uma estética menos popular, mais escura e seca em relação aos filmes que enchem os olhos do público. O discurso atinge, fere, cria raízes no espectador, promove a reflexão diante daquele conjunto de cenas em ritmo particular.
Selton Melo desempenha um papel significativo, incorporando o negociante que tranforma sentimentos em mercadorias vazias, onde só se pode ver o valor de uso, para depois reinvesti-las de significado, construindo uma trama pessoal para tudo aquilo que o cerca e interessa. É também o homem que promove a coisificação das pessoas, reduzindo sua existência à utilidade que possuem diante de suas necessidades individuais. Não quer estabelecer com elas uma relação de troca, mas de compra, onde ele tem o poder e o controle.
Acontece que, diferente dos objetos, pessoas são seres animados por vontade, sensíveis a estímulos e capazes de interagir com ambições particulares. Não correspondem, necessariamente, às nossas vontades, como bem sabem aquelas pessoas que voluntariamente trocam o trato com gente pela exclusiva relação com animais adestrados, que, como dizem, "estão sempre ali". Existe um forte desejo por segurança, controle e poder sobre as relações construídas.
Este assunto me recorda a passagem de uma música divinamente interpretada por Nina Simone, entre outros, em que ficam as palavras,
I put a spell on you
Because you're mine
You better stop
The things that you're doing
Esse é o poder do fetiche, o de enfeitiçar, de dobrar seus seguidores diante dos desígnios que representam. Desarmoniza o equilíbrio entre o ser e as coisas, criando uma fixação que, muitas vezes, pode se converter em penúria. Para vencer o fascínio exercido pelo objeto, preciso é conhecer seus encantos, compreendê-los, entender como se relacionam com os desejos e, posteriormente, investir-se de energia para superar as representações.