“Mestre dos Mares - O Lado Mais Distante do Mundo” (Master and Commander - The Far Side of the World)
“Mestre dos Mares - O Lado Mais Distante do Mundo” (Master and Commander - The Far Side of the World)
Olelê, está chegando o carnaval, momento de vestir a(s) fantasia(s) e sambar na avenida.
Para quem foge da cuíca e samba no cineclube só se pode dizer que descartar a diversão de “Master...” seria um erro. (Será um erro). Cinema é arte de revisão, o que não se aprendeu daquela vez, aprende-se nesta.
“Master...” representa uma fatia da Sétima de primeiríssima categoria, espantoso pensar que foi rodado no presente século, teve uma penca de indicações e levou apenas Melhor Fotografia e Melhor Edição de Som.
Russell Crowe perfaz o capitão do H.M.S. Surprise e desde já ponto para todos os diálogos sobre poder, tirania, dever e lealdade, travados entre ele e o cirurgião Paul Bettany.
Peter Weir dirige desde a costa brasileira (NE) até o extremo sul do continente e daí a Galápagos, incluindo toda a tripulação inglesa com suas crendices, garra e cacoetes, além de rechear com primazia uma história muitíssimo bem contada.
“Remem! Remem como se um francês estivesse em cima de suas mães!!”, brada um dos tenentes de Crowe, quando do primeiro encontro com o Acheron.
Em 1805 a única nação capaz de se opor à tirania e manter uma marinha em pé de igualdade com os corsários de Bonaparte era a Inglaterra. Ocorre que o Acheron era um navio francês totalmente alinhado com a modernidade, recém saído de estaleiros bostonianos, maior, com o dobro do número de canhões e mais rápido.
O plus da história (uma história cheia de plus) é como é que se recebe e se lida com todas essas informações em 1805. Um filme de época, quando bem arquitetado, equivale a uma viagem no tempo que nos conta como se raciocinava face às circunstâncias impostas pelo então presente. Se bem cuidada, uma viagem ao passado sempre se torna uma lição valiosa, já que todos somos frutos não só do minuto anterior como de 100, 200 anos para trás e muito mais, de uma forma ou de outra.
No manual dos jogadores (profissionais) de pôquer norte americanos figura a seguinte máxima: se depois de meia hora de jogo você ainda não descobriu quem é o trouxa, então o trouxa é você.
Por duas vezes o Surprise de Russell Crowe encontrou o Acheron, a primeira já tinha sido uma amarga surpresa, Russell descobriu a tempo o seu papel na peleja. Quando ele divisa o navio francês pela segunda vez seu imediato indaga:
- O que vamos fazer?
- Fugir como o diabo da cruz! – responde Crowe, taxativo.
O roteiro de Weir e John Collee baseado nos livros de Patrick O'Brian é jóia rara para os patamares de razão&sensibilidade, ainda que escondidos sob a carapuça da aventura com alguns espadachins.
Na segunda fuga do Acheron entra em jogo uma perseguição que dura de 8 a 10 horas, haja têmpera, durante esse período perseguidor e fugitivo estão ao alcance das vistas um do outro, o primeiro ganha terreno palmo a palmo, embora com vagar, o segundo conta com a chegada da noite e um pequeno ardil para desaparecer do mapa.
Toda a observação da história funciona como um ampliador da consciência, mesmo que, de imediato, a mesma não saiba o que fazer com a nova informação. Seria o caso de indagar: que necessidade tenho eu de saber que todas as mulheres que desembarcaram com D. João VI no Rio de Janeiro estavam carecas, devido aos piolhos? Essa informação, extraída do livro “1808”, de Laurentino Gomes, sempre irá acrescentar, jamais subtrair. Eis um dos papéis da história.
Peter Lindsay Weir nasceu em Sydney, Austrália, em janeiro de 1944, e com isso o cinema ganhou um novo ângulo, vide, a exemplo, “O Ano Que Vivemos em Perigo”, “Sociedade dos Poetas Mortos” e “O Show de Truman”.
O Surprise estaciona em Galápagos, as Ilhas Encantadas, como diziam, para deleite do personagem vivido por Paul Bettany, misto de médico, músico, naturalista e candidato a sair da roda dos eleitos para a Teoria da Evolução. Mais um pormenor numa trama cujas reviravoltas são puro espelho da vida, engrenagens dentro de engrenagens testando o brio da existência a cada minuto e, note bem, assim como a música consiste na pausa entre as notas, as calmarias dentro do enredo surtem o merecido efeito.
Weir utiliza um cuidado carinhoso para com os neurônios de quem assiste, os meandros são biscoito fino, há o menino que perde o braço e ganha o livro do Almirante Nelson, o marinheiro que sofre uma cirurgia e uma moeda é utilizada para tapar-lhe o crânio, o suicídio de um tripulante, que todos julgam estar amaldiçoado, os jantares dos oficiais junto com os oficiais mirins e a própria performance de Crowe, desta feita como um autêntico guerreiro do século XIX, que empunha o sabre e o violino com relativa destreza e cuja astúcia tem a humildade necessária para permanecer vivo até a próxima etapa.
“Mestre...”, além de educar e distrair, tem raro requisito - filme com miolo dos 50 e tecnologia/linguagem da aurora do século XXI.