Harry Potter e as Relíquias da Morte - parte 1

O filme começa. Vemos os Dursley deixando com pressa o Nº 4 da rua dos Alfeneiros, enquanto Harry observa com nostalgia os cômodos vazios da casa dos tios onde passou grande parte de sua vida. Vemos Hermione tomar uma atitude difícil e corajosa, para manter seus pais seguramente afastados do conflito que bate à porta; ela utiliza um feitiço para apagar memórias, e a câmera passeia pelos porta-retratos da casa ao passo que as imagens da existência da garota vão desaparecendo, assim como as lembranças que o casal tem dela. Então vemos uma reunião dos Comensais da Morte, onde Voldemort assassina uma professora de ‘Estudo dos Trouxas’ que pouco antes estava sendo torturada; o corpo tomba sobre a grande mesa e a câmera nos mostra uma lágrima escorrendo dos olhos abertos e sem vida da mulher. A cena choca. A sala de cinema fica em silêncio absoluto por alguns instantes. Nunca se vira uma cena de violência tão bruta na série, e todos tem certeza de que “Harry Potter e as Relíquias da Morte – parte 1” é diferente. O filme pega tudo aquilo que foi construído em “O enigma do príncipe”, e eleva a uma alegoria da paranóia e do medo que acompanham as sociedades contemporâneas.

Com mais tranquilidade ao adaptar um livro em duas partes, David Yates cria cenas maiores, mais lentas e muito melhor trabalhadas. Utilizando câmeras de mão “nervosas” e planos bem abertos, o diretor consegue mostrar o nervosismo e a solidão dos personagens num mundo grandioso e austero. Tudo acompanhado pela trilha sonora de Alexander Desplat, que pode até não superar John Willians, mas realiza um trabalho muito digno, com composições que variam entre o sombrio e o excêntrico; e mesmo naquelas faixas mais “alegres” percebe-se uma melancolia velada, que mantém a noção de que nada realmente está bem. Além das músicas instrumentais, Desplat utiliza uma música de Nick Cave “O’Children”, canção que fala sobre crianças crescendo e enfrentando um mundo cruel, e que embala um momento de descontração entre Harry e Hermione.

A direção de arte continua muito primorosa com seus cenários grandiosos ou mais singelos, como o Ministério da Magia ou o pequeno vilarejo de Godric Hallows. Junto a isso temos a fotografia de Eduardo Serra, que investe em tons opacos, sombrios e frios, que resaltam a jornada insólita dos personagens por lindos cenários naturais.

Toda essa solidão transparece pelo olhar dos personagens que ganham muito mais carga emocional. Dentre os atores do trio protagonista, Daniel Radcliffe é o ponto mais fraco, com uma atuação que ainda soa artificial em alguns momentos. Rupert Grint já demonstrou uma boa evolução, entregando uma atuação mais sólida, com seu Rony repleto de emoções. Mas Emma Watson é sem dúvida a que mais se destaca, pois seu personagem pede isso; Hermione é quem guia eles pelo mundo trouxa, e mantém a sobriedade nos momentos de maior dificuldade. Chegou a vez dela pôr em prática tudo o que aprendeu nesses anos de estudo, e ela não decepciona apesar da grande pressão que sofre no mundo desolado que a cerca.

Apesar de serem breves, as aparições dos coadjuvantes que são na maioria veteranos, sempre são ótimas. Seja na loucura de Helena Bonham Carter como Bellatrix, ou na excêntricidade de Rhys Ifans

como Xenofílio Lovegood. Palmas também para Hazel Douglas, que consegue sem falar praticamente nada, interpretar de forma sombria a historiadora Batilda Bagshot.

Relíquias da morte sem dúvida é um filme à parte na saga de Harry Potter. A ausência de Hogwarts nos faz adentrar praticamente em uma outra realidade, e os feitiços que lá no início soavam tão inocentes e escassos, agora são utilizados contantemente para a auto-defesa e também para solucionar problemas que aparecem aos montes.

O medo e a paranóia tomam conta de todos e Steve Kloves soube trabalhar muito bem com isso no roteiro. Os membros da Ordem da Fênix temendo impostores disfarçados, fazem uns aos outros perguntas frequentes que só eles próprios saibam; enquanto Rony vive grudado em um rádio, esperando com angustia que os nomes de seus familiares não constem entre as vítimas do poder crescente das trevas.

O discurso de oposição do Ministro da Magia de nada adianta, pois o mesmo acaba por ser assassinado e o Ministério é tomado por Voldemort, que inicia uma era ditatorial que muito lembra o nazismo: perseguições, torturas e assassinatos aos bruxos de sangue impuro; julgamentos sem provas e uma forte propaganda “Anti-Mestiços” aos moldes da publicidade nazista capitaneada por Goebbels. Tudo isso acompanhado de um falso discurso de normalidade que todos sabem que não há.

O clima de guerra é evidente neste filme e uma cena em especial chama a atenção: o ataque dos agentes disfarçados no Café em Londres, que lembra muito um ato de terrorismo. A própria luta em si não remete a um duelo mágico, mas sim a um tiroteio com armas de fogo. Dessa forma vemos nas telas apartir da fantasia, uma analogia dos medos que são tão reais em nosso mundo, principalmente nos países que possuem conflitos separatistas ou que sofrem com atentados de radicalistas islâmicos.

Num filme repleto de tantas baixas, uma em especial se destaca e ocasiona um dos momentos mais tocantes da série, logo na parte final. Esse momento simboliza a morte da ingenuidade, representa uma página virada sobre qualquer esperança de comodismo. Esse parece ter sido o o climax ideal, o ponto perfeito para se dividir o livro nas telas.

Harry Potter e as Relíquias da Morte – parte 1 consegue ser maduro, frio, assustador e hostil, ao mesmo tempo que consegue nos fazer rir e lembrar com nostalgia dos velhos tempos. É um filme completo, que consegue balancear inúmeros elementos e nos faz finalmente perceber o inevitável:

Agora só falta mais um.

Jean Carlos Bris
Enviado por Jean Carlos Bris em 05/12/2010
Reeditado em 05/12/2010
Código do texto: T2654752
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