Análise de obra literária adaptada ao cinema: Memórias póstumas. (Parte II)
Canalhice ou preconceito?
O filme desvela imagens, gestos e atitudes que são reveladoras da canalhice de Brás Cubas, que se aproxima da jovem Eugênia e inicialmente sente-se atraído pela jovem bela, afastada do mundo banal da corte. No entanto, isso o autor já descreveu com habilidade no romance, mas agora o filme mostra-nos uma moça bonita e coxa, mas a descoberta de Brás Cubas desse defeito físico, trás também a sua rejeição. Em que pese, a cena deixar transparecer o preconceito do personagem burguês, trata-se de um dos momentos mais bem sucedidos do filme do ponto de vista da equivalência (4) entre o filme e o romance. Resultado: Cubas recua de suas intenções ante a jovem Eugênia e retorna apressado para a vida social após perceber que a moça era coxa:
... “Saímos à varanda, dali à chácara, e foi então que notei uma circunstância. Eugênia coxeava um pouco, tão pouco, que eu cheguei a perguntar-lhe se machucara o pé. A mãe calou-se; a filha respondeu sem titubear:
- Não, senhor, sou coxa de nascença.”...
“Porque bonita, se coxa, porque coxa, se bonita?”
A obra toma novo rumo com o encontro com Virgília, seu retorno à vida burguesa, na tentativa do pai de torná-lo um deputado, o reencontro com Marcela mais velha e empobrecida, os passos seguintes de sua história inútil são mantidos no filme. A disputa política e amorosa com Lobo Neves, faz o personagem perder Virgília e o cargo de Deputado. A cena que marca o fim das esperanças dos Cubas é construída pelo diretor assim: Brás e o pai dirigem-se à casa de Virgília para pedir sua mão e descobrem que Lobo Neves já é o escolhido.
A morte do pai de Brás Cubas, o casamento de Virgília e a sua mudança com o marido para São Paulo, levam o personagem a levar uma vida retirada. Tal situação será alterada com o retorno do casal. A partir daí, Cubas reencontra-se com Virgília(5), torna-se amigo do marido e da mulher, e inicia um caso com a mulher.
Os detalhes da relação amor-interesse estão presentes em diversas cenas: traição, amizade, aproximação, frustração com a possibilidade de o deputado mudar-se do Rio de Janeiro, o alívio causado pelo fato deste não ter se mudado; a descoberta velada do caso de amor pelo deputado; a viagem para uma província do norte.
Brás envelhece – Reginaldo Farias assume o papel de Petrônio Gontijo – e aprofunda a sua vida vazia e mesquinha: a amizade de Quincas Borba, que reaparece nesta obra (e no filme) como pobre, mendigo e se impõe nessa sua nova existência, personagem símbolo de Machado que ridiculariza a sociedade com seu esoterismo (ideologia do humanitismo, crítica ao positivismo); a experiência como parlamentar; a passagem dos anos e as novas possibilidades de realização de um casamento, a morte da noiva; a companhia de Quincas Borba – diferenciado - rico com herança recebida da família.
A busca da imortalidade por meio do “Emplasto Brás Cubas” que, segundo sua teoria nostálgica, resolveria os males da humanidade. O golpe de vento, a pneumonia, a morte. Tudo cuidadosamente representado na versão filmada.
Conclusões
Ao analisar os aspectos narrativos e imagéticos que dão força ao filme situando-nos em determinado momento da história brasileira, vê-se que “Memórias póstumas” vai além da sua própria representação, pois nos permite mergulhar na condição humana. A obra original de Machado de Assis e sua representação fílmica cumprem com esse objetivo, a partir delas é possível refletir-se sobre o vazio da vida das classes ociosas no Brasil do fim do império.
A classe burguesa e seus constantes intercâmbios com a Europa por meio dos nossos bacharéis românticos, ao menos traziam consigo os ideais iluministas, que não mudando o mundo, de certo modo foram úteis para moldar a nova ideologia burguesa no país. Brás Cubas mostra o contrário destes poetas acolhidos como heróis de nosso passado: o aprendizado da cultura cosmopolita através de um amontoado de informações inúteis; as experiências do filho da classe dominante não ultrapassando o nível sensorial. Se algum aprendizado fosse possível, este seria o da hipocrisia e da desconfiança.
O cinema de Klotzel, na minha opinião, vem a referendar o posicionamento neo-realista de Zavattini que sustenta a tese de que “o cinema dá a cada minuto da vida uma importância histórica”. Seja a vida qual for, até mesmo a de Brás Cubas (vida inútil). Contraria a visão burguesa, positivista do teórico alemão Kracauer, até mesmo por uma interpretação simplista, mas que aponta a ideologia do diretor (ao optar por este romance) voltada para a crítica social da burguesia brasileira do fim do século XIX.
E, parafraseando o próprio defunto-autor, por meio de sua célebre conclusão, em que tem como o seu maior legado em vida (ou seu pequeno saldo) uma omissão (ou negativa): “não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”
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4 - Termo extraído do texto Cinema, tradução, infidelidade: os casos de Madame Bovary. Do Professor Adalberto Muller Jr.
5 - O diretor do filme não faz alusão ao “um primo de Virgília” que no romance de Machado procede na reaproximação de Brás e a jovem.
Ficha Técnica da versão filmada
Título: Memórias Póstumas; Ano de Produção 2001, Brasil, Cor, 101 minutos; Direção: André Klotzel; Roteiro: André Klotzel adaptação do romance Mémorias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis; Produção: André Klotzel; Música: Mário Manga Fotografia: Pedro Farkas; Desenho de Produção: Marjorie Gueller Direção de Arte: Adrian Cooper Edição: André Klotzel. Elenco: Reginaldo Faria (Brás Cubas e seu fantasma) Petrônio Gontijo (Brás Cubas, jovem) Marcos Caruso (Quincas Borba) Stepan Nercessian (Bento Cubas) Viétia Rocha (Virgília) Débora Duboc (Dona Eusébia) Otávio Muller (Lôbo Neves) Walmor Chagas (Dr. Vilaça) Sônia Braga (Marcela) Nilda Spencer (Dona Plácida) Joana Schnitman (Mãe de Brás Cubas)
Bibliografia
ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Editora O Globo. São Paulo. 1997.
MÜLLER Jr., Adalberto. Cinema, tradução, infidelidade: os casos de Madame Bovary. Nº 11, Famecos/ PUCRS. Porto Alegre. Julho de 2004.
NOTAS DA PRODUÇÃO do filme Memórias Póstumas de André Klotzel.
http://paginas.terra.com.br/arte/dubitoergosum/arq41.htm
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico. 3ª Edição revista. São Paulo: Paz & Terra, 2005.