Análise de obra literária adaptada ao cinema: Memórias póstumas. (Parte I)
Apresentação
Baseado no romance de Machado de Assis (1) – autor mais estudado da literatura brasileira – o filme “Memórias póstumas” mantém as características que marcam o personagem machadiano, alternando irreverência e amargura, saudosismo e bom-humor sem perder o misto de sutileza e objetividade da obra original. Em qualquer estado de espírito, a representação cinematográfica surpreende na relação entre a ironia e a lucidez.
O diretor do filme conseguiu com sucesso adaptar o romance homônimo para o cinema, André Klotzel põe o leito de morte e o espectro de Brás Cubas (pálido e com as feições de morto) acompanhando o espectador em vários momentos do filme (2) e de fato, nos dá a dimensão do ceticismo machadiano com a vida burguesa na sua época. Após sua morte, no ano de 1869, Brás Cubas, da eternidade, narra suas memórias e revisita os fatos mais marcantes de sua vida. Infância, juventude e personagens memoráveis, como o amigo Quincas Borba. A faculdade em Portugal e o privilégio de não ter precisado trabalhar.
Na obra de Machado de Assis, em se tratando do escritor brasileiro mais estudado pelos literatos mundialmente (3) , a possibilidade de adaptação de suas obras apresenta-se como uma temeridade, pois haverá sempre algum especialista que analisará as omissões que a obra cinematográfica guarda em relação ao romance original.
A conversão da literatura para o filme é uma tarefa difícil por tratar-se de duas linguagens distintas. Machado de Assis em sua obra utilizou-se do seu talento para criar situações em que a subjetividade e a objetividade apareçam entrelaçadas, tanto na descrição das características específicas dos personagens como das condições sociais nas quais eles estão imersos, digamos, dentro dos seus “fluxos de vida”. Vê-se, então, que a tarefa imposta ao romancista é a de criar um mundo completo, com horizontes indeterminados, e, ao mesmo tempo, permitir que o leitor possa apoderar-se de “pequenos fatos” a partir de referências subjetivas e objetivas que constam na obra. Eis o romance e seu grau de complexidade elevado.
Em contrapartida o cinema e seus meios imagéticos permitem ao criador da obra de arte representar de forma imediata o “fluxo da vida material”; não precisa de descrições longas da realidade objetiva. Ele tem meios para mostrá-la e mesmo as características psicológicas dos sujeitos envolvidos na trama não precisam ser contadas e sim demonstradas. O cinema, sobretudo nas adaptações da literatura, tem a tarefa de dispensar os discursos longos, mas obriga-se a “sugar” ao máximo o ator, para este transmitir as emoções de certos personagens.
O foco no filme.
Para se discutir esse filme, logo, mesmo tendo em mente a obra original, devemos afastar-nos da tentação - que sempre nos persegue - de procurar sua veracidade em relação ao Brás Cubas original e investir, com mais ambição, na possibilidade de descortinar a contribuição do filme para a visualização da sociedade brasileira e de alguns de seus personagens em um período histórico já passado. Dessa forma, é interessante ressaltar que o cineasta ateve-se em grande parte do filme ao texto original, olvidando-se da capacidade do artista em recriar uma obra original.
Em síntese, a história narrada por próprio Brás Cubas, nos dá conta de sua própria vida burguesa. O filme começa com o enterro de Brás Cubas, acompanhado por uns poucos amigos, com a sua própria narração do fim da sua existência. Desde seu início, o filme guarda o ar cômico do personagem com a existência humana. A história inicial é contada de forma retrospectiva, com um defunto-autor relatando sua existência. Não se trata, portanto de um autor que após a morte pode ser consagrado, mas um morto relembrando sua passagem na vida, sendo cobrado em seus desvarios pela própria natureza que o faz viajar no tempo e ver os horrores da vida.
O diretor, fugindo um pouco à sua tendência, inclui imagens de horrores do século XX, talvez pela falta de registros de horrores – filmados – do século anterior. Ato contínuo, temos Brás lembrando o seu nascimento, as futilidades da família burguesa na sua época de infância; a ausência de referências fortes nos seus genitores; a vida de prazeres banais na sua juventude, quebrada pelo surgimento de sua primeira amante, Marcela:
... “De todas, porém a que me cativou logo foi uma ... uma... não sei se digo. (....) A que me cativou foi uma dama espanhola, Marcela, a “linda Marcela”, como lhe chamavam os rapazes do tempo.”...
A mulher vaidosa – encarnada pela atriz Sônia Braga – ocupará o jovem durante mais de um ano, renovando as promessas de amor em troca de jóias e presentes caros.
...“Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos.”...
Outro momento importante do filme é viagem para a Europa providenciada pelo pai para impedir que o filho destruísse toda a herança da família com presentes a amante Marcela. Estudar Direito em Coimbra, como ocorria com os filhos das famílias ricas no Brasil não tinha o propósito efetivo de formar um jurista memorável, mas sim o de providenciar um diploma para o personagem transitar na Corte.
Klotzel consegue por meio de paisagens de Coimbra e da sua conceituada Faculdade de Direito unir o relato à imagem representando a inutilidade do curso de direito para os filhos dos burgueses brasileiros. Assim como, descreve o turismo de Cubas pela Europa e seus amores em vão, tomados como passatempos para evitar o retorno imediato ao Brasil após o fim do curso de Direito.
Brás Cubas retorna ao Brasil após o aviso de que a sua mãe encontrava-se no leito de morte. Chega em tempo para acompanhar a morte da mãe; isso trará um novo momento, o de inflexão do personagem que se distanciará da vida urbana, abrigando-se na floresta da Tijuca.
CONTINUA...
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1- Memórias póstumas de Brás Cubas.
2 - Narrador, que por meio de sua visão, narra sua própria história em vida e dos desvarios de sua sociedade. Na versão filmada, o surgimento do ator nos planos ao mesmo tempo dentro, mas alheio à cena, reforça a idéia do espectro, o defunto-autor das linhas de Machado de Assis revisitando suas memórias .
3 - E o cinema, pelo seu alcance e popularidade torna-se um elo que reforça essa afirmativa, pelo seu caráter “globalizante”.