“Ágora” é um filme de Alejandro Amenábar, passado em Alexandria, no séc. IV D.C. na altura em que o cristianismo, na sua fúria vingativa, ganhava terreno sobre as religiões pagãs do Império Romano.
No centro da trama está Hypatia, que realmente viveu nessa época. Hypatia era uma mulher bonita que exercia um fascínio poderoso sobre os homens que a rodeavam. Mas Hypatia era muito mais que apenas uma mulher bonita. Era uma mulher bonita que pensava. Estudava astronomia, matemática, geometria e ensinava numa academia. Foi uma filósofa de prestígio no seu tempo, uma mulher verdadeiramente excepcional.
O filme é todo ele atravessado por contrastes. Um contraste profundo entre o fanatismo de uma religião em ascensão, que usava a violência para se afirmar politicamente, e a razão de uma mulher serena que pretendia celebrar o conhecimento e a união entre as pessoas.
Aquela mulher só almejava descobrir os mistérios do movimento dos astros. Como se deslocavam a Terra, o Sol, os planetas? O que estava realmente no centro do Universo? A Terra, como afirmava Ptolomeu? Ou seria o Sol, como ousara afirmar Aristarco?
Hypatia fazia cálculos mas nada parecia bater certo naquelas rotas em círculos perfeitos dos planetas em torno da estrela. A perfeição dos céus não fazia sentido. Até que, olhando para o seu Cone de Apolónio, descartou o círculo, a parábola e a hipérbole ao perceber que a forma imperfeita restante, a elipse, era a solução. E fez-se luz no espírito, em vésperas do nascimento da Idade das Trevas da Humanidade.
Outros contrastes encontram-se, por exemplo, nas cores diferentes que os membros das várias religiões envergam e que permitem um efeito visual excelente nas cenas de lutas entre cristãos e pagãos, cristãos e judeus, e que permitem ainda distinguir de entre os cristãos um grupo especialmente agressivo, os Parabalani, fundamentalistas da pior espécie, que na sua marcha imparável de barbárie movimentam o enredo do filme na direcção de um terceiro acto trágico.
Não se está habituado a ver os cristãos como fanáticos intolerantes que levam tudo à frente e não têm piedade para com aqueles que não comungam da mesma fé. Em “Àgora”, demonstram fraca memória da sua própria história e demasiada habilidade no uso das mesmíssimas tácticas usadas contra cristãos quando eram eles que estavam em minoria, acabando, por não terem sido capazes de aprender noções de humildade e empatia, a cometerem as mesmas atrocidades que sofreram na pele.
Mas de facto eles arrasaram com as religiões mais antigas, aniquilaram culturas inteiras exibindo um desdém pelo saber amealhado pelas mesmas ao longo de milénios. Os pagãos, egípcios e romanos, converteram-se, com ou sem convicção, e os judeus foram massacrados e relegados para segundo plano. Aqueles cristãos que destruíram a biblioteca de Alexandria, numa das cenas mais chocantes do filme, eram autênticas bestas e Amenábar, apesar de não ter como objectivo criticar o cristianismo, não se coibiu de os mostrar como tal.
Esta franqueza toda não deve ter sido fácil de engolir por certos públicos. O que talvez explique algumas das críticas ao filme, que não foram nada brandas e preferiram apontar-lhe algumas debilidades técnicas, convenientemente evitando abordar as ideias. E essas, por parco que tenha sido o orçamento em contraste com a ambição própria de um projecto desta natureza, sobreviveram. No filme, e na História.
O filme não é um filme menor. É, sim, um tributo ao livre pensamento, à paixão pelo conhecimento, à tolerância que provém do raciocínio lúcido. E às mulheres.
Hypatia é uma mulher com uma personalidade apaixonante. Tem uma enorme integridade moral, sem ser santa. Tem defeitos próprios da sua condição humana no contexto em que vivia, pois não consegue perceber que a escravatura é moralmente errada, mas é mesmo assim a pessoa mais inteligente, mais sensata e a mais corajosa do filme. Lutou por salvar da cegueira devastadora da maralha religiosa uma pequena parte dos milhares de pergaminhos guardados na Biblioteca de Alexandria, a mais importante da Antiguidade. À sua façanha devemos nós a sobrevivência dos poucos textos de Aristóteles que perduraram na História.
Quando é compelida a converter-se ao cristianismo, para que os seus críticos se calassem, ela recusa. Numa das cenas mais conseguidas do filme, Hypatia explica que a fé não deixa que se questione nada mas ela, enquanto filósofa, é obrigada a fazê-lo constantemente.
Não existe uma relação amorosa típica entre um homem e uma mulher nesta história. Os dois protagonistas, o escravo e o Prefeito de Alexandria, estão apaixonados pela filósofa. Mas ela tem um amor maior: o Cosmos.
Esta obra-prima de Amenábar (mais uma depois de “Mar Adentro”) tem alguns pontos em comum com “Contacto”. Sagan no seu romance de ficção também tem como principal figura uma mulher. E no livro “Contacto” (ao contrário do filme em que o final está alterado) a cientista acaba por ficar sozinha. Foi um tributo prestado à mulher que é inteira, que não precisa do outro para se completar. Sagan iria apaixonar-se por Hypatia, como o espectador que perceba a mensagem do filme facilmente se apaixonará, e escreveria sobre ela no seu livro “Cosmos”.
Rachel Weisz tem aqui um dos papéis da sua carreira. A sua Hypatia está perfeita no equilíbrio entre paixão pelas descobertas da ciência e moderação do discurso político com que tenta apaziguar os ânimos entre partes desavindas. Uma interpretação memorável. Uma beleza iluminada. Uma verdadeira estrela.
Max Minghella interpreta Davus, o escravo pessoal de Hypatia, a personagem co-adjuvante mais sólida do restante elenco. As emoções de Davus dividem-se entre o amor que tem pela sua senhora e a revolta que sente pela sua condição de escravo. Se para o amor não encontra saída, vê no cristianismo uma oportunidade de ser livre. Junta-se ao braço armado dos cristãos e participa nas chacinas, sem nunca esquecer a capacidade de questionar o que faz e por que o faz. No final, mesmo sabendo-se impotente para deter a sede de destruição dos cristãos que inevitavelmente ditará a sorte da mulher que ama, Davus prova ser melhor aluno dos ensinamentos de Cristo do que os seus irmãos Parabalani. O seu último acto de compaixão acaba por representar a um rasgo de esperança na Humanidade.