“O Segredo dos Seus Olhos” (El Secreto de Sus Ojos)
“O Segredo dos Seus Olhos” (El Secreto de Sus Ojos)
Os réus confessos e amantes incondicionais de Maigret, que se reúnem todas as noites consigo próprios e ninguém mais, a fim de rogar ao altíssimo a aparição de novelas similares, podem iniciar o rito de agradecimento pela prece atendida.
Considerado pela liturgia oficial como drama, “O Segredo...” inclina-se em definitivo para o gênero romântico incisivo com um plus policial, o que o torna único, um tanto menos único somente face ao gênio de Simenon e seu inspetor Maigret, o maestro das pequenas humanidades em meio ao lado B do cotidiano.
Juan José Campanella dirige e roteiriza em parceria essa pérola portenha que fez bonito na festa do Oscar 2010.
Em 1974, no Tribunal Penal de Buenos Aires, chega a notificação de um estupro seguido de morte. O funcionário que estava lá no dia e hora, para se incumbir da ocorrência, é o personagem Benjamín Espósito, vivido pelo ator Ricardo Darín. Ponto.
Vinte anos depois, já aposentado, Espósito irá pinçar do seu passado o Caso Morales, irá debruçar-se sobre ele e, através do ato de escrever um livro, vai descobrir a si mesmo, em meio a outras descobertas, e na aventura de sondar o Olho que Tudo Vê terminará nos contando uma história de inegável valia.
“O Segredo...” tem amparos sólidos. Primeiro, foi baseado no livro “La pregunta de sus ojos”, de Eduardo Sacheri. Ou seja, começa na literatura, que se por um lado não é um atestado absoluto, por outro atesta absolutamente que o que surgir a partir, é lucro. Depois, Juan José Campanella reserva nas credenciais “O Filho da Noiva”, além de algumas aventuras extra-continentais, dirigindo episódios das séries “Law & Order” e “House”. Terceiro, a trinca Ricardo Darín, Guillermo Francella e Soledad Villamil bota pra quebrar em gênero, número e grau, Soledad ganhou o justo status de melhor atriz revelação. No filme eles são, respectivamente, Espósito, Sandoval e Irene.
Quem te viu, quem te vê, diz o passado olhando o presente, ou vice versa, “O Segredo...” vai nas duas faces, o romantismo impera, seja na imagem do vagão de trem se afastando, seja no uso da máquina de escrever, seja principalmente na singela amizade de Espósito e Sandoval, e, permeando tudo, no amor contido, platônico, entre Espósito e sua chefe, Irene. Vigoram na trama os hábitos, as saudades, o heroísmo quixotesco, o humor de lampejo, a observação do próximo.
Morales teve a esposa assassinada. Em momento algum a justiça o encara como um envolvido na bestialidade. O eventual suspeito é encontrado através das fotos do álbum do casal, ainda assim é uma suposição. Inexistem provas e o caso é arquivado. Sua reabertura deve-se ao heroísmo de Benjamín Espósito, que argumenta com sua chefe sobre o amor do viúvo.
Na trama, a ditadura argentina só aparece para quem conhece, identificá-la equivale ao mesmo labor para descobrir o gênero dos pintinhos nascidos em granja, quando examinados pela lupa do especialista em pintinhos. Juan José faz a elegia da sutileza e o aviso dado pelo enredo de que algo incerto ocorre por ali surge quando se plasma a anomalia, e os personagens a detectam. Como é que um sujeito que estava encarcerado por estupro seguido de assassinato, passa a ocupar um quadro de importância na Nova, por assim dizer, Ordem? Mais para a frente veremos a silhueta do Ford Falcon, esse símbolo da besta do período, que na mesma época levou o pianista do nosso Vinicius, para nunca mais voltar.
Com uma produção muitíssimo bem observada, o que há nos ambientes retratados é um olhar sabedor do que deve conter a copa e a cozinha de uma casa modesta em 1974, numa província próxima a capital, bem como devem ser os corredores do judiciário, suas escrivaninhas e papeladas, dados momentos o ar dos 70 parece conservado em formol.
Sandoval, no bar, local de sua predileção, para desgosto de Espósito, decifra a essência do assassino através de um maço de cartas. Com semblante sabedor, ele diz que uma pessoa pode mudar de cidade, de país, mudar de nome, pode inclusive mudar de família – mas uma coisa permanecerá sempre, onde quer que essa pessoa esteja – suas paixões.
Vinte anos se passaram e Espósito, ao remexer nas memórias e colocar em pauta o Caso Morales, verá no seu próprio destino a confirmação da tese do amigo – o amor por Irene permaneceu incólume. Como estamos falando de um filme movido pelo fluido romântico, o tempo pode ter passado na janela, mas ainda há tempo.