NOSSO LAR

O LIVRO

Em 1943, o espírito de André Luís, médico falecido no Rio Janeiro, no início do século, ditou ao médio Francisco Candido Xavier a obra denominada Nosso Lar. Publicada em primeira edição em 1944, já vendeu perto de 2 milhões de cópias e agora foi transportada para o cinema pelo cineasta Wagner Assis.
Nessa obra o desencarnado autor narra sua experiência na vida após a morte, descrevendo minuciosamente o período em que ele fica no chamado Umbral, até ser socorrido e levado para uma cidade espiritual denominada "NOSSO LAR"...
"NOSSO LAR" é uma cidade espiritual, fundada no século XVI por portugueses desencarnados no Brasil (sic). Sua localização é um espaço sutil, que se localiza sobre a cidade do Rio de Janeiro. A cidade apresenta uma estrutura semelhante a uma cidade dos vivos, pois apresenta um governo e vários ministérios, cada um cuidando de um aspecto da vida após a morte, todos concorrendo para a preparação do espírito do indivíduo, visando a sua reencarnação.
A Governadoria está situada num edifício, de altíssimas torres, cujos cumes se perdem no céu. São seis os Ministérios que administram a cidade: Ministério da Regeneração, do Auxílio, da Comunicação, do Esclarecimento, da Elevação e da União Divina. Cada uma dessas Repartições é administrada por doze Ministros, cada um com suas atribuições.
A população dessa cidade é de cerca de um milhão de espíritos, constituída por homens e mulheres desencarnados.
Na aparência ela se assemelha a uma cidade antiga, mas com construções no estilo moderno. É cercada por uma grande muralha, defendida com baterias de proteção magnética. Dentro dela há conjuntos habitacionais, uma imensa praça central que consegue acomodar até um milhão de espíritos. Além disso, têm também fontes luminosas, jardins, lindos parques arborizados, um bucólico Bosque das Águas, um resplandecente Rio Azul, um deslumbrante Campo da Música, uma Câmara de Retificação para enfermos, etc.

É nessa cidade, através dos seus ministérios, que se processa a educação dos espíritos, para que eles possam reencarnar em níveis espirituais mais desenvolvidos. Mas antes de entrar nessa cidade, se for necessário, o espírito deve perambular por uma região tenebrosa denominada Umbral. Essa é uma região assinalada com várias escalas morais, sendo a mais baixa e infeliz aquela denominada de Trevas.

QUEM FOI ANDRÉ LUÍS

André Luís é o personagem dessa interessante história de vida após a morte. Ele é um médico que falece após uma delicada operação cirúrgica, feita para extrair um câncer no estômago. Em vida, ele foi um sujeito nem bom nem mau. Trabalhou, fez o que tinha que fazer, sem muito entusiasmo e sem muita preocupação com a espiritualidade. Aliás, ele pouco acredita nisso, pois sendo médico, sua tendência é muito mais pela descrença do que pela crença numa vida após a morte. 
Em vida foi um homem que viveu apenas pelos sentidos. Experimentou uma vida desregrada, buscando só os prazeres carnais. Por isso, depois de desencarnar, ele tem que passar um tempo no chamado Umbral, uma região tenebrosa, onde as os espíritos chafurdam na lama, passando sede, fome, frio, medo e lembranças das dores e angústias experimentadas em vida. É o mundo da purgação, pelo qual todos os espíritos que não desenvolvem certo nível de espiritualidade em vida tem que passar.
Por que ele está ali, pergunta-se? Ele não sabe, mas após chafurdar nesse lamaçal de angústias durante um tempo que não consegue determinar, ele enfim aprende a orar e a pedir perdão. Então recebe a visita de um espirito luminoso, chamado Clarêncio, que é o Ministro da Regeneração. Então é levado para dentro das muralhas da cidade chamada Nosso Lar. É ali, no seu período de regeneração e convalescença que ele irá descobrir que foi parar no Umbral porque em vida ele foi considerado um suicida. Mas ele não se matara, morrera num hospital, após uma cirurgia no estômago. Clarêncio então lhe ex-plica que viver uma vida desregrada é semelhante a um suicídio. Foram seus atos em vida, comendo e bebendo sem regramento, a sua falta de cuidado com o corpo e a total ausência de preocupação com a vida espiritual que acabaram levando a somatização de um câncer de estômago. “Esse é um efeito da lei da ação e reação” diz o Ministro da regeneração.E essa é a mensagem doutrinária do livro.

A história de André Luiz, o médico que se regenera e depois passa a ditar textos para Chico Xavier é bastante emblemática. Contém elementos de Divina Comédia, de Dante Alighieri, da cidade de Deus, de Santo Agostinho, e incorpora outros aspectos arquetípicos de histórias do gênero. Não fosse uma obra psicografada por Xico Xavier, um médium de muito respeito e que nem de longe pode ser taxado de charlatão, é bem possível que ela pudesse ser elencada entre os bons romances do gênero, comparável talvez ao imaginativo Memórias Póstumas de Bráz Cubas, de Machado de Assis, onde o autor também descreve as suas aventuras em vida através da pena de um desencarnado. A diferença é que as memórias póstumas do espírito André Luiz é uma mensagem otimista e as de Bráz Cubas é obra pessimista. Mas essa é outra história.
Nosso Lar é uma cidade bastante estranha. Lembra uma cidade antiga, cercada por muralhas, e tem um certo quê de Jerusalém com sua Mesquita da Cúpula Dourada. Lembra também Paris com seus lindos parques e jardins e chama uma impressão do Rio de Janeiro dos anos vinte.
Mas também mostra uma face futurística que parece ter sido extraída de uma obra de Júlio Verne, ou quiçá, mais moderna, de Aldous Huxley, com sua visão do Admirável Mundo Novo.

O FILME

O filme ‘Nosso Lar’ foi feito com sofisticação e esmero. Mostra que o cinema nacional evoluiu muito. Se dissessem que o filme foi feito em Hollywood, não seria difícil de acreditar. Wagner Assis, o diretor, consegue transmitir uma imagem de sonho e pesadelo ao mesmo tempo, combinando uma atmosfera de fantasia e misticismo. Belas cenas em flashback, com bons efeitos especiais, dão ao filme uma beleza plástica digna de nota. Nosso Lar é um filme de época, pois toda a trama é ambientada nos anos vinte. O Rio de Janeiro do início do século é reconstituído de forma muito competente.
A mensagem do filme é aquela patente em toda a doutrina espírita, presente em todas as obras de Xico Xavier. Ensina que vivemos muitas vidas e cada uma delas é parte de um processo de aprendizagem. Essa aprendizagem é uma jornada em busca da iluminação. Somente quando nos tornamos espíritos de luz, é que nós deixamos de reencarnar. Enquanto isso não acontece, continuamos nascendo e morrendo, em níveis mais altos ou mais baixos de consciência espiritualizada, processo esse que é regulado pelas ações praticada em cada experiência anterior.
Em síntese, essa vertente do espiritismo nada mais é do que adaptação da teoria védica das gunas, doutrina hinduísta que descreve um processo de nascimentos e mortes do indivíduo sempre conformados pelas ações que ele pratica na sua vida anterior. É o processo kármico ao qual todos estamos chumbados e somente na medida em que nós vamos nos libertando da escravidão dos sentidos, em cada vida, é que nós conseguimos escapar desse ciclo contínuo de nascimentos e mortes, que é a roda de Sansara.
André Luiz não é personificado como um homem mau, apenas é inconsciente a respeito desse processo. Em termos de filosofia kármica, segundo a teoria das gunas, ele estaria vivendo à moda de Rajas, a guna da paixão, ou seja, uma vida voltada apenas para a consciência dos sentidos, que é uma fase em que a pessoa não é má nem boa, apenas ignora o processo, porque só cuida dos prazeres sensuais.
No caso de André Luís trata-se de uma inconsciência obstruída por uma vida abastada, que lhe proporciona a realização de todos os prazeres materiais. Ele é um médico bem sucedido, pode pagar boas noitadas regadas a uísque, na companhia de belas mulheres. Faz alguma filantropia, mas somente como parte de um programa social. Portanto, é um homem descomprometido com qualquer processo de aprimoramento espiritual.
São esses espíritos que, segundo a doutrina defendida por Xico Xavier e seus seguidores, depois de desencarnados, deverão cumprir um período no Umbral. É aí que vemos certa influência da Divina Comédia na obra de Xico Xavier. Na genial obra de Dante, os espíritos que em vida não fizeram nem mal nem bem também passam um tempo no Limbo ―O Purgatório católico ―antes de poder aspirar a um lugar melhor na rígida escalada da vida após a morte. Na obra de Xico Xavier, a novidade é a inserção, no tema da expiação e castigo, da possibilidade de ressurreição através da reencarnação, já que para a doutrina espírita, a passagem do espírito pelas diferentes etapas dos mundos da vida e da morte é um processo de aprendizado, enquanto que para a doutrina católica, desenvolvida por Dante na Divina Comédia, esse é um processo escatológico mesmo, ou seja, uma fómrmula de consumação do tempo e da história, onde a experiência humana se resume em uma única etapa, e o que foi feito foi feito, sem possibilidade de redenção através de novas experiências.

UMA METÁFORA

Na verdade, a história de André Luís acaba sendo uma bela metáfora a respeito da doutrina do karma e da reencarnação. Reflete uma crença e como tal deve ser encarada. No sentido que lhe damos, ela nos aparece sobre uma visão muito mais otimista do que a visão católica desse processo. Ela oferece chances ao indivíduo. Diferente da visão medieval da Igreja Católica, que criou um lugar de tormento eterno de onde o espírito a ele condenado não pode escapar, na doutrina espírita o inferno é a vida eterna, presa na roda dos nascimentos e mortes. Não lutamos para ir para um lugar de delícias, que é o céu, mas para nos livrarmos da matéria, onde um dia o nosso espírito foi encerrado. Essa é uma crença que o espiritismo também emprestou da Gnose. A diferença é que, para os espiritas, pode ser que existam pessoas que prefiram fazer essa escolha, e assim continuarem a viver para sempre no inferno da vida, onde o prazer e a dor se alternam com científica regularidade.
Por outro lado, podemos demorar mais para obter a nossa luz, mas seguramente um dia a conseguiremos, se nos esforçarmos para isso. Isso corrobora as palavras do evangelho: todas as almas alcançarão a salvação de Deus. Porque em nossos espíritos, todos somos feitos de luz. Da mesma forma que nossos corpos são feitos de pó e ao pó obrigatoriamente retornam, os nossos espíritos, também, um dia retornarão à substância da qual foram tomados. O quanto demora esse retorno é que constitui o que chamamos de livre arbítrio. Podemos abreviar esse caminho ou podemos alongá-lo. Essa é a nossa escolha. É nesse sentido que nós apreciamos essa visão de Xico Xavier. E desse ponto de vista ela nos aparece como uma cativante mensagem de esperança.


João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 14/09/2010
Reeditado em 14/09/2010
Código do texto: T2497788
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