Primeiro Mentiroso (The invention of lying)
E eu falava de "Ricky Gervais" pela manhã. Disse-me um aluno, inglês, mas uruguaio também, que Ricky fizera a versão original do seriado The Office, que hoje é estrelado pelo Steve Carell e passa no FX, aqui no Rio de Janeiro. Eu já conhecia o Gervais de outras épocas, de "Uma noite no museu", aquele filmeco com o Ben Stiller, de "Stardust", outro filmeco, mas desta vez com Michelle Pfeiffer, mas a verdade é que eu só tenho mesmo a memória latente de "Ghost Town", em que ele protagoniza um dentista que tem problemas com um espírito que não transcende.
Acabei de assistir "The invention of lying", que recebeu a tradução aceitável de "Primeiro mentiroso", e acaba sendo uma experiência boa. Não é um filme incrível, mas é um filme com uma mensagem muito interessante, humanista, e que usa uma linguagem bastante acessível, tanto a verbal quanto a imagética, o apelo visual, os atores elencados, tudo faz desta obra dirigida e produzida por Ricky Gervais uma forma honesta de falar ao público sobre o poder da palavra. O "verbo", como diz a bíblia, o processo, a ação, também se dá pela linguagem, pelo discurso, que age diretamente sobre o tecido social. O impacto pode ser mínimo, mas também pode criar situações grandiosas. Desde que nos ligamos pela fala, tornamo-nos vulneráveis ao instrumento, como qualquer um que manipula armas. O lance é garantir a grossura do teu calibre.
As atuações de Jennifer Garner e Rob Lowe estão boas, acreditem. Obviamente, não vão fazer da sua vida uma revolução, nem mesmo transformar sua experiência cinematográfica o último fenômeno social, mas caricatos, conseguem esconder a personalidade que a mídia adora expor, e apresentam uma personagem livre do que quase sempre conseguimos distinguir como comum nas recorrentes atuações em suas carreiras. Até o Edward Norton dá uma palinha e é no mesmo estilo, caricato, criando um tipo cômico. Tem força, não é aquele besteirol alucinado ou um pastelão já mofado. O equilíbrio, por vezes, chega a amornar a coisa, mas você definitivamente se diverte com este filme do Gervais. Até porque certos trechos dos diálogos são pérolas bem interessantes.
O grande lance do filme, na minha opinião, é como grande parte da nossa convivência, do nosso conhecimento, das nossas relações, das menores às maiores, tem como constituinte o caráter imaginativo. Sem o poder de ficcionalizar os fatos, de aumentá-los, de diminui-los, de ver sobre, sob, através, ou seja, sem o poder de manusear a realidade objetiva, a vivência se torna uma simples e imparcial loteria genética; os seres humanos são ou não afortunados por suas características, se misturam a partir de critérios subjetivos que orientam o desejo e não vão além do empírico, tratando com cinismo inabalável tudo aquilo que percebem. O fim é animador, ainda que um pouco porco. Sabe quando você faz algo só pra terminar um trabalho? Ele podia ter dado um desfecho bem mais interessante que aquele, mas não espero tanto assim dele pra me sentir desapontado. Na verdade, esperava até bem menos. O filme tem fôlego, não irrita por debilidade, excesso de lacunas, a coisa flui e tem naturalidade.
Humor mais ácido e Ricky Gervais pra vocês. Depois venho com alguma outra coisa menos pop, algo que já se esconde na penumbra e precisa ser resgatado, como fazemos nas nossas locadoras, procurando pelo nome do diretor ou da obra mesmo, garimpando novas formas de viver a sétima arte.