“O Fabuloso Destino de Amélie Poulan” (Le fabuleux destin d'Amélie Poulain)
“O Fabuloso Destino de Amélie Poulan” (Le fabuleux destin d'Amélie Poulain)
O cinquentão Dominique Bretodeau, (personagem), caso fosse um alto executivo com jornada de 10hs/dia, ou condutor de trolebus com a mesma carga, talvez se desencontrasse da cabine telefônica. Seria tão improvável entrar nela sem motivo algum, quanto mais prestar atenção a pequena caixa enferrujada junto ao aparelho. Mas não, Dominique gosta de destrinchar o frango depois de assado e com uma das mãos levar aos lábios o curanchim da ave, para demorada degustação. Dominique vai a feira e cozinha. Sua carga horária permite a contemplação do mundo à sua volta.
Bertold Brecht certa feita disse o seguinte: Nosso teatro precisa estimular a avidez da inteligência e instruir o povo no prazer de mudar a realidade.
Enquanto não surge um novo Bertold, a missão descrita acima fica a cargo de Jean-Pierre Jeunet (direção) e Guillaume Laurent (roteiro).
Todos os personagens dessa saga em miniatura são, sem o saber, aspirantes a Legião Zen Ocidental, todos cuidam dos pequenos prazeres irrefletidos, a mãe de Amélie gosta de encerar o chão com pantufas, seu pai adora enfileirar os sapatos antes de engraxá-los, a dona da taberna onde Amélie trabalha manca, mas nunca derrubou um copo, o gato da aeromoça gosta de ouvir o som da tigela de leite que sua dona lhe serve, ao tocar no chão. A própria protagonista adora jogar pedrinhas na água e admira o modo como o empregado do quitandeiro acaricia as endívias.
Com um jeito modernoso para 2002, Jean-Pierre Jeunet dirigiu um mundo à parte. Seu filme emplacou na França e daí para 3 continentes, bateu à porta da Academia pleiteando estatuetas, foi indicado para 5, nas seguintes categorias: Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Direção de Arte, Melhor Fotografia, Melhor Som e Melhor Roteiro Original.
Leve deve ser a existência, eis a entrelinha dominante da saga, leve e sinuosa, cheia de vielas arborizadas, todas dotadas de historinhas floridas que chegam noutras vielas, com mais árvores e mais historinhas.
O pai de Amélie, um médico militar aposentado e distante da filha no que diz respeito as coisas do afeto, ao auscultá-la, percebe o disparo no coração da criança. Ele diagnostica a menina com uma anomalia cardíaca. Com simples embora geniais jogos de cenas, a narrativa gasta poucos minutos para construir uma personagem que vai da infância à
maioridade carregando suas defesas e crenças porta à fora pela vida.
Amélie, o protótipo da mulher moderna do mundo à parte, soterrada por fascículos e fascículos de mulheres modernas peladas, é uma heroína à moda antiga, cujo coração palpita por um grande amor e cujo despertar espiritual acontece - pois a fé sem obras é morta - quando ela restitui a caixa de brinquedos ao melancólico Dominique.
Para a turma toda, do elenco aos que botam o elenco para girar, resta dizer: vão ser sutis assim nas mais altas esferas. A obra de Jeunet e Laurent é uma ode aos delirantes com tempo de sobra e objetivos espraiados. Audrey Tautou não levou em Hollywood, mas teve a devida recompensa nos diversos festivais em que o filme participou, eleita Melhor Atriz Revelação por seu papel como Amélie Pulan.
Quando a protagonista encontra o álbum de fotografias automáticas, sendo a cena em si boa demonstração de que o diretor fala fluentemente os vários idiomas da câmera, ela e o vizinho, o pintor decano, conjeturam sobre a mesma foto que aparece em diversas páginas. Quem será? Será um sujeito cujo receio da morte é tão grande que quer se perpetuar até em fotos 3x4? Ou será um morto, confabulam, realizando intervenções no universo dos vivos?
A heroína e o pintor são, na verdade, mais um par de delirantes positivos, (existem os negativos...), numa obra equivalente a um “chega pra lá” no rol de obras que só representam tiros&traições – tiros&transações – traições& transações – tiros&tiros.
O ótimo “The Holiday” (Cameron Diaz&Kate Winslet) fez uma clara citação ao labor de Jean Pierre, nas cenas de Cameron se auto-avaliando.
A presepada “Up in the air” fez outra, mais explícita, com a história do anão de jardim do pai de Amélie viajando pelo mundo.
Esse detalhe, mais um nessa galáxia de detalhes, acontece de modo curioso, pois hoje o mezzo-popular software Photoshop – tarjado como o mais poderoso manipulador de imagens existente, 7 milhões de comandos e 36 mil atalhos de teclado, (isso em 1997), poderia ter sido usado escrachadamente no roteiro, não fosse o romantismo norteador do trabalho, que forjou uma aeromoça para fotografar o anão junto aos ícones do turismo planetário.
Amélie descobre no mural de achados e perdidos do metrô o cartazete reivindicando o álbum de retratos extraviado. A câmera centra na protagonista e o roteiro exala que uma garota normal devolveria o perdido sem delongas, mas, se assim não procede, deve-se ao fato de viver fugindo da realidade.
Uma boa ironia da história.
Ninguém ali está na realidade. A zeladora do prédio suspira pelo falecido que fugiu com a secretária para os pampas há mais de 30 anos. O pintor não sai de casa há duas décadas e a cada ano pinta uma réplica dos Barqueiros, de Renoir. O escritor da taberna troca manuscritos por um antepasto. A mulher da tabacaria se refugia na hipocondria, ao passo que o amante recusado faz uso de um gravador para equacionar hipóteses sobre as ex-amantes. Estampada nos jornais, nas falas de transeuntes, nos que fazem fila na quitanda, a morte de Lady Di...
O álbum pertence a Nino, um sujeito que antes desse hobbie – catar restos de fotografia tiradas em cabines de fotos automáticas – fotografava pegadas inadvertidas em cimento fresco e fazia as vezes de Papai Noel dos carentes.
Amélie indaga se ele tem namorada. Vem a resposta: não, são tempos difíceis para sonhadores.
Seu cacoete de infância e seu “despertar” tornam-na uma heroína justiceira/interventora no tempo e no espaço do cotidiano alheio. Suas reparações e seus feitos generosos são imbuídos de tremenda presença de espírito com o intuito de sanar corações solitários, seja em questões de caras-metades, seja em assuntos fortalecedores desses mesmos corações.
O diretor Jean Pierre esbanja um sem número de artifícios cinematográficos, ele passeia com fineza pela linguagem publicitária, pelo cinemão dos travellings sofisticados, tramita nas intervenções de luz e som, animações, a cartilha da fuga da realidade está em todo lugar, até no vídeo do Tour de France, que Amélie manda para o pintor, mostrando o momento em que um cavalo pula a cerca de suas dependências campestres e vai se emparelhar com os ciclistas.
“O espectador virá ao teatro para divertir-se assistindo às suas próprias atribuições, as durezas do trabalho de que depende a sua subsistência, bem como para sofrer os impactos das suas incessantes transformações. Aqui ele poderá produzir-se a si mesmo da maneira mais fácil, pois o modo mais fácil de existência é exatamente a arte”. (Bertold Brecht).