“Entre os muros da escola” (Entre les Murs)
“Entre os muros da escola” (Entre les Murs)
Nas cenas primeiras, corpo docente reunido e tomando conhecimento de si mesmo. Quem és tu, de onde vens, qual matéria lecionas, há quanto tempo nessa instituição... Um deles diz que ensina tabuada e não matemática. Depois o corpo troca figurinhas sobre o alvo e razão de seu ofício: os alunos. Gentil, não gentil, gentil, não gentil, assim são descritos os matriculados para o aprendizado. Coisa do emprego da palavra na cultura francesa: vous et trés gentil . Um pequeno vocábulo dá a pista de todo o território.
Laurent Cantet dirige.
“Entre les Murs” já comemora um par de anos ou tanto mais nas salas de exibição paulistanas. Se perguntarem para o autêntico sucesso: de onde vens? - ele terá de olhar para cima para obter a resposta.
Matriculados=adolescentes franceses, salientando que na França o que vale é a Lei do Sangue e não a Lei do Solo. Exemplo: nasceu no Brasil, é brasileiro. Nasceu na França, somente na puberdade decide-se ser francês ou não. De qualquer forma, nalgum ponto entre a remota Lutécia e as guerras napoleônicas convencionou-se nomear essa etapa como, (em idioma francês) l'age bête. A idade da besta.
Cenas segundas: adolescentes tomando seus assentos na sala de aula. E pensar que, alheio a tudo isso, noutro plano e noutro contexto, Nelson Cavaquinho escreveu: “Quando eu piso em folhas secas, caídas de uma mangueira, penso na minha escola...”.
François, o professor de francês, dirige a classe Família Benetton. Mal sabia a marca de abrigos que a despeito de seu patrocínio automobilístico o que estabeleceu mesmo, através de suas campanhas, foi nos dizer com um jeito comercial de ser que todos somos um, não importando nossa aparência.
O detalhe em destaque desse roteiro está no levantamento de miudezas, uma pá de miudezas, manifestadas durante a aula por aqueles que enlouquecem professores. E o trabalho de direção é de uma simplicidade desconcertante. Juntando um e outro obtém-se um filme entre 4 paredes nada nada cansativo.
Nas cenas terceiras a esgrima de François com
noviços e noviças acerca do sentido das palavras leva o espectador a agradecer ao Altíssimo pela persistência das mentes brilharem. Somente quando brilham podemos vê-las.
Laurent Cantet faturou a Palma de Ouro (Cannes) por essa produção de 2007. Em 2005 Laurent dirigiu “Em Direção ao Sul” (Vers le Sud).
Ao cabo do meio das terceiras cenas e do revelador diálogo entre François (o professor) e alunos, sobre a função prática do imperfeito do subjuntivo na atualidade presente e futura dos futuros formandos, e quando se vê eles argumentarem com a propriedade de suas cabeças, que ninguém fala assim, minha mãe não fala assim, minha avó não fala assim, nem minha bisavó fala assim, (...), pensa-se de novo em Nelson Cavaquinho, que teve a sorte de colocar melodia em suas letras.
Outro ponto positivo desta situação francesa colegial é a transmutação da hipnose americana de brancos versus negros para outra mais tênue, de chineses versus marroquinos versus antilhanos, etc. Em parte, são as abelhas da(s) colônia(s) voltando à colméia mãe.
Agora entramos em território delicado, pois certos fatores do roteiro, desnecessário citar, estão no plural e são idênticos à produção “Escritores da Liberdade”. Descontando as datas, (ambos são de 2007), Hollywood tem pilhas e pilhas de refilmagens francesas. Acontece que a ação de “Escritores...” ocorre em 1995 e sua história é conhecida como verídica. Se for uma vírgula para “Entre os muros...”, será para se ponderar depois, pois o show não para.
A dupla de meninas Esmeralda e Khoumba, que aliás estão na capa do DVD, são aliás merecedoras da capa. Duas meninas comuns, dir-se-ia a média do ser humano fêmea cujo maior adereço é o sorriso de menina, despojadas de quinhentos balagandans e apetrechos eletrônicos. A juventude como já foi um dia e como é de fato, pois o furor consumista das mídias adolescentes cria somente uma “boa falsa idéia”.
Lógica, argumentação, contra argumentação, lógica amparada pela lógica e não pela força, são dados relevantes na condução da obra, (quem sabe reflexos do sistema educacional francês), e irão se projetar com igual presença no incidente semântico entre mestre e aprendizes.
No momento em que o espectador passa a considerar François como sério candidato ao cânon, este chama as alunas de vagabundas.
A lógica e a argumentação serão decisivas no fator semântico. François é um erudito e um educador. Essa palavra para ele tem conotação com relaxada, errante, inconstante. A percepção da classe capta o pejorativo, sinônimo de mulher da vida. Se algum deles tivesse um Aurélio de 1980, descobriria que vagabunda é também o nome de uma formiga da subfamília dos poneríneos.
Com isso estamos nas cenas quartas e há uma reação em cadeia, mas, todas as reações em cadeia apresentadas no filme não usam a vestimenta do espetacular e sim, uma vez mais, a da lógica, argumentação, contra argumentação.
Adaptação livre da obra “Entre les Murs”, de François Bégaudeau, que não é outro senão o professor de francês François Marin, e seus alunos não são outros senão eles mesmos, o filme nos coloca na quarta dimensão da globalização.
Acostumamo-nos a pensar em globalização por meio de produtos e serviços. Oh, esse penico foi feito em Cantão. Ou, oh, essa massagem de polegares foi inventada na Micronésia.
Em “Entre os muros...”, a química do intercâmbio face a face da classe do senhor François espalha 4 continentes em “pegadinhas”, visões, gírias, aspirações, preferências, costumes e comportamentos numa tentativa de estabelecer contato além do visual. E uma vez vencida essa etapa, cumprir o decreto do cosmo e partir para além disso. Somente através da educação...
Estamos em plena mudança e futurista algum pode sequer cogitar para onde nos levará a efervescência que nos permeia.
A labuta de Bégaudeau e Laurent mostra sem cerimônia e com tato francês o que acontece num baú de moléculas adolescentes e multiculturais.
É ver para crer.