“Capitalismo: uma história de amor” (Capitalism: a love story)
“Capitalismo: uma história de amor” (Capitalism: a love story)
É preciso considerar o fator missionário da comunicação, algo mesmo além da venda de cevada gasosa enlatada, por exemplo, e Michael Moore entronado como o capelão número um da missão comunicativa.
“Capitalismo: ...” sai do cinema para se tornar obra de referência e consulta em toda prateleira que se preze.
“A cada sete segundos, uma casa é executada nos EUA”.
Vai-se assistindo o estafante labor de Moore, ele mesmo se diz cansado e pede ajuda, e começa-se a perceber o que realmente deve/deveria ser uma crítica com argumento, uma informação com opinião. E chega-se a conclusão de que vivemos numa redoma, ainda infestada de vuvuzelas, (quem sabe um dia isso termine), onde só se fala do arqueiro e seus comparsas, dos armamentos dos contrabandistas de psicotrópicos, dos salteadores menores e suas trágicas trapalhadas ou de eventos patrocinados. O buraco descrito na obra não é abaixo, mais embaixo, nem ao lado, ele está pairando acima, cresce desenfreadamente e diz respeito a todos, mesmo com os fatos restritos aos Estados Unidos da América.
MM (Michael Moore) usa verbalmente a figura da cenoura sempre na nossa frente enquanto puxamos a carroça, expressando ainda, em palavras mesmo, que todos vivemos na esperança de um dia alcançar a cenoura. Longe disto surgir solto, como metáfora ou figura de jogo poético, MM apenas sublinhou o que ele havia mostrado num capítulo anterior.
No biênio 2005/2006 o Citigroup criou 3 análises para seus maiores investidores, sobre a situação em geral. Chegaram a conclusão que os USA não eram mais uma democracia, mas tinham se tornado uma plutonomy. (Plutonomia: sociedade controlada exclusivamente por e para o benefício do 1% mais rico da população). Esses 1% cumulam mais riquezas do que os outros 95% juntos. (Pra que explicar os 4% restantes?). Se isso não é mais uma manchete entre as cabeças que pensam que pensam, MM mostra mais pra frente a inacreditável façanha do governo Bush Jr. plus parceiros privados. Inacreditável se torna uma palavra aquém do fato. Nesse instante você estala a língua e repete o que os antigos diziam: a que ponto chegamos...
Essa informação, se por um lado denota o principio da espinha dorsal do documentário, por outro qualifica-se como fichinha perto da labuta de MM, que levantou dados e dados, fatos e fotos, e se não vai receber aplausos por parte de todos, todos, ao menos, dotados de um pingo de bom senso, hão de prestar o devido respeito ao esforço do diretor. Enquanto Dan Siegel, do Hunffington Post, considera esse “o mais americano dos filmes, desde o cinema populista de Frank Capra, (“A Felicidade Não se Compra”), por motivos óbvios a resenha reitera que a área de interesse extrapola fronteiras.
“O povo dos EUA, em geral, poderá ficar enfurecido com os ricos. As pessoas que enriqueceram neste país, nas últimas décadas, não estavam fazendo coisas que todos amam. Estavam fazendo jogos que terminaram prejudicando a todos”.
Tantas hipotecas foram executadas pelos bancos que aquele desfile de casas vazias que às vezes aparece num filme ou outro trai uma realidade brutal. Tiram sua casa e você vira um sem teto, só que o bairro inteiro, literalmente, transforma-se num amontoado de casas vazias. Para onde vão os sem teto? De encontro aos novos ventos...
Tiram sua casa, inclusive, e na maior parte das vezes, de forma fraudulenta, a ponto de uma senadora declarar que o congresso está podre e sugerir que as pessoas não mais deixem suas moradias.
A ponto de o xerife de certa localidade passa a proibir a execução de casas em seu território.
Ambas as ações, apenas duas amostras no impecável quadro de amostras de MM, foram sopradas pelos novos ventos, que atende por duplo nome: Barak Obama. Em pouquíssimas palavras, e diante do realizado pela administração anterior, Obama não pode fugir ao matiz de ser iluminação no fim de um túnel imerso em trevas. Essas trevas não só tem nome como logotipo e campanhas publicitárias.
Âncoras de TV, em iniciativa própria e não por conta do sensacionalismo/histerismo jornalístico, passam a emitir opiniões bastante válidas sobre os bancos:
“Se nós, contribuintes, vamos ajudar no resgate de empresas como o Bank of América, o mínimo que eles podem fazer é usar o dinheiro em prol dos trabalhadores americanos”.
(Oficialmente, ou se preferir por cima do pano, o último suspiro da administração anterior havia dado 25 bilhões de dólares ao Bank of América).
A congressista e o xerife vão somando adeptos. Iniciativas ganham lugar aqui e ali. Em meio a esses eventos de “rebelião pacífica” mostrados por Moore, onde nem a polícia chegou perto, chega o filho de um metalúrgico de Chicago, para engrossar o coro: o bispo de Chicago - James Wilkowski: “sei que vocês estão passando por uma provação – diz ele – mas estão ensinando aos nossos jovens que é justo combater a injustiça”. Com a mesma observação, bispo James faria sucesso em incontáveis paragens.
“Quando a realidade parece ficção, está na hora de fazer documentário”.
Talvez Moore não leia português, talvez esse slogan da TV Cultura valha mesmo seu peso em ouro, mas um documentário de Moore tem sua marca registrada: quantidades de pensamentos em curso, orquestrados e arranjados num fluxo contínuo, que organizam outros múltiplos pensamentos, exibidos através de um vasto trabalho de campo e amarração coerente.
Foi-se o tempo de dizer que uma partida dessas perfaz a bofetada na cara do stablishment. Os novos tempos e ventos provam que toda tese tem sua antítese. A monstruosidade financeira, cuidadosamente arquitetada pelo governo Bush e descarada parceria com ícones de Wall Street, encontrou aquilo que existe desde antes dos druidas, para curar malefícios: o antídoto. MM é o antídoto.
Moore termina seu filme mostrando um feito da Era Roosevelt, dos mais eletrizantes e inspiradores, e que infelizmente não deu em (quase) nada.
Nas penúltimas cenas ele usa imagens da devastação do Katrina e narra o seguinte: “porque são sempre os pobres que estão gritando por ajuda? Por que não vemos os presidentes da AIG ou do Citibank? Nunca são esses caras. São sempre os que jamais recebem a fatia do bolo, pois esses homens tomaram tudo e os deixaram sem nada. Eu me recuso a viver num pais assim. E eu não vou embora”.
“Capitalismo:...” dura 127 minutos, e em meio a tantas e salutares lições o cineasta ainda se dá ao luxo de nos explicar as diferenças clássicas e básicas entre socialismo, democracia e capitalismo. Esse último é encarado como um mal, “não se pode regulamentar o mal”, avisa ele, que aponta a democracia “de fato” como a melhor solução para colocar ordem na casa.
Nos agradecimentos especiais, Joan Baez e Paul Mazursky figuram entre os cerca de duzentos nomes de pessoas físicas, sindicatos, corporativas, associações, museus, e o que vier pela frente, afinal, para ser guerrilheiro, nem sempre é preciso usar uma bandana, um tapa-olho e uma espingarda.
PS (Infelizmente, com o correr dos anos MM se tornou um babaca)