O discurso de Anthony Hopkins em “O Julgamento do Diabo”
A figura mitológica do diabo sempre me deixou curioso no que diz respeito às muitas formas que os artistas imaginaram para representá-lo. Na história bíblica, a figura de uma serpente dá início aos muitos potenciais de aspectos que o diabo, ao longo da história de suas tentações, usará para seduzir suas desesperadas prezas a penhorar suas almas em troca de fama e fortuna. Com o passar dos séculos, no universo representativo do diabo os artistas que o imaginaram evoluíram seus aspectos de répteis a bodes com corpo de homens e, na modernidade, o Cinema o fez parecer às vezes crianças, belos e poderosos homens e belas sedutoras mulheres – como a atriz Jennifer Love Hewitt, que representa o diabo no filme “O Julgamento do Diabo”, com Alec Baldwin como seu protagonista, tendo o filme o ator Anthony Hopkins como uma das presenças mais importantes.
Alec Baldwin, ator/diretor do filme, faz o papel de um escritor que, como todo artista em dificuldades, sonha com o sucesso e a boa vida que dele supõe advirem, e então uma mulher o procura, literalmente o diabo em figura de gente, a lhe oferecer o que ele quer pedindo em troca sua alma, clássico eterno desejo do tinhoso.
Mas aqui, apesar do tema ser instigante, não vou falar sobre as muitas representações do mal pelas artes e culturas do mundo, ou por que mais um roteirista opta por apresentar o diabo como uma bela mulher, ou ainda sobre o que há de verdadeiro em todas as muitas representações que fazem dele. Aqui, com a permissão dos administradores do site Recanto das Letras – e a eles meus agradecimentos pela possibilidade do exercício da liberdade de expressão – quero aqui reproduzir o discurso final feito pelo ator Anthony Hopkins no filme, que faz o papel do advogado de defesa do escritor a reivindicar do diabo sua alma de volta, depois que ele usufrui seus dez anos de sucessos, tempo do contrato que faz com o malfeitor-mor – uma vez que sua vida de fama e fortuna lhe trouxe muitas tristezas, sentindo-se o escritor ter sido enganado pelo diabo, o que deveria não tê-lo surpreendido.
No corpo de jurados convocados pelo diabo para o julgamento, os espíritos de escritores famosos como Truman Capote, Jacqueline Susan, Ernest Hemingway, Oscar Wilde e Mario Puzo, entre outros.
Para Juiz, enviam-lhe um amigo escritor, interpretado pelo ator Dan Aykroyd, de quem o personagem de Baldwin, Jabez Stone, “rouba” o argumento de seu primeiro livro de sucesso – que vende milhares de exemplares, mesmo sendo o texto uma porcaria – sendo o diabo seu próprio advogado.
Tenho certeza que todo filme foi feito como amparo a necessidade deste discurso final pronunciado por Hopkins, tão belo quanto verdadeiro, ao tratar condição real não apenas de certos escritores, mas de muitos outros artistas desesperaods ao redor do mundo. Vamos a ele:
“Meritíssimo, membros do júri, este homem foi levado por seus sonhos. Quando as portas se fecharam, ou melhor, uma janela de esperança no desespero dele, ele tentou uma saída. Ironicamente, o que ele mais queria na vida, ser um bom escritor, felizmente estava ao seu alcance. Então essa criatura apareceu e turvou sua mente. Ela lhe ofereceu sucesso, dinheiro e mulheres. Mulheres tão belas quanto ela. Quem deu esse tipo de poder a essa criatura? Certamente não foi Deus. Ele a baniu! Ela não tem poder natural. Não. A triste verdade é que a força dela vem de nós. Por que acham que ela trabalha tanto, arrebatando o máximo possível de almas humanas? Porque elas possuem o que ela não tem: livre-arbítrio. Minha oponente diz que o Sr. Stone a procurou porque o que ele tinha não era o bastante. Que ele queria mais. Mais o que? Mais dinheiro, sexo, poder, controle? Foi o que ela o levou a acreditar. Mas quando meu cliente a procurou, ou melhor, quando ela o procurou, o que meu cliente mais queria eram leitores. Queria que as pessoas lessem o que escreveu. Ele é um escritor. É o que os escritores querem: um público para as suas palavras, para as suas visões, para sua verdade, se quiserem. É o que todos nós queremos. Uma oportunidade de dizer o que sentimos, em que acreditamos, como a realidade é para nós. É o que eu quero, o que ela quer. É o que os senhores querem, o que meu cliente queria. O que ele conseguiu? O que ela lhe deu em troca de sua alma imortal? Sim, ela lhe deu fama, deu poder, deu dinheiro. Ela lhe deu leitores, um público. Mas um público para que? Sem sua alma, o que ele tinha a dizer? Sem sua alma, o que importa que ele tenha um público? Sem sua alma, todos os leitores do mundo não importariam, porque sem sua alma Jabez Stone não podia escrever. Certamente não algo que importasse. Certamente não a verdade. Deus podia ter criado a realidade que quisesse, mas criou esta. Nascimento, dor, conflitos e morte. A dor nos lembra de evitar o que machuca. Os conflitos nos desafiam a ser melhores do que somos. E a morte... Ah, a morte. A morte nos dá a chance de analisarmos o bem que fizemos ou deixamos de fazer na vida. Sim, é um mundo doloroso. Por isso, quando alguém como Jabez Stone surge e observa esta dor, e lhe dá forma para que a entendamos, quando alguém assim surge, um visionário, um líder religioso, um estadista, um santo ou uma pessoa comum com um bom coração e um bom senso, quando alguém como Jabez Stone surge temos de lutar por ele. Não para o bem dele, mas para o nosso” – conclui o personagem de Hopkins, um belo discurso de defesa daqueles que, além de seus grandes talentos e da imensa responsabilidade de desenvolvimento humano que lhes pesa o ser, pensam poder satisfazer sua alma somente se atenderem aos excessos que, por séculos e séculos, a diabólica cultura do consumo os fez acreditar ser necessário a vida de seus corpos.