“Janela Indiscreta” (Rear Window)
“Janela Indiscreta” (Rear Window)
A revista Exame de 19/05 mostra que o maior mercado consumidor do globo não está na China e ou nos demais emergentes mas sim no sexo feminino. Trata-se, portanto, da dimensão constituída da fêmea consumidora.
Que o Incriado continue abençoando o poder de síntese dos idealizadores de obras primas, justamente aquelas obras que parecem estar sussurrando uma modorrenta cantilena quando na verdade detém a graça de nos mostrar uma história contada com a classe que só eles têm. Eles, os idealizadores, que ainda por cima se atrevem a visões proféticas do que seria a imagem mor da fêmea consumidora.
Alfred mostra Grace Kelly à medida que ela acende os abajures na casa do namorado. Grace está deslumbrante e esse deslumbre vai se descortinando a cada abajur que ela acende. O namorado de perna quebrada assiste, como nós, a exuberância de Kelly. Hitchcock era um gênio, James Stewart um gentleman e Grace, a aliança perfeita entre beleza e classe.
“Rear Window” foi rodado em 1954. Vale à pena pegar a calculadora e tamborilar na mente os números da passagem. Enquanto duas montanhas (ou três montanhas) soçobraram no vasto espaço das linguagens e abordagens ultrapassadas, “Rear...” permanece como esses monumentos encarados como patrimônios da humanidade – alheio ao tempo.
Alfred já havia mostrado as cercanias – a vizinhança e os apartamentos próximos, principalmente, ao alcance da vista do imobilizado James, contrafeito, entediado, lembrando suas aventuras como fotógrafo da National Geographic.
1954 não é um cenário, é uma data onde vidas assim se desenrolavam e James passa horas na janela vendo o corriqueiro de cada um no seu poleiro representando para as próximas gerações que um condomínio pode existir sem portaria e câmeras de segurança.
Uma mulher toma uma réstia de sol num recorte mínimo de grama. O casal em núpcias se tranca no quarto e cerra as cortinas. O pianista busca a melodia que no final do filme estará completa. Uma bela jovem vive cercada de admiradores. Uma solitária monta jantares e conversa animadamente com convivas invisíveis. Um casal discute e, nesse apartamento, ocorrerá um crime.
Grace, estonteante, acendeu os abajures e, com um estalar de dedos, chama o garçom do mais sofisticado restaurante de Nova Iorque, que aguardava atrás da porta. O homem traz lagostas, vinho e o que mais possa ser do merecimento deste fotógrafo que tem a pachorra de dizer que ela não é mulher para ele.
Acadêmicos dizem que “Janela Indiscreta” é um filme todo sustentado pela edição. Quanto a isso, o próprio Alfred lança mão de um pequeno exemplo: “digamos que Stewart repare na mulher com a criança, corta, reação do Stewart, corta, Stewart olha para outro lugar, corta, vê a moça sendo cortejada, corta, Stewart sorri, (...) são as peças juntas na montagem que criam um filme genuíno”.
Muitos conhecem a fórmula, poucos voam livres na manipulação dos elementos.
A atriz Thelma Ritter faz a enfermeira de Stewart e tenta lhe explicar, como se ele estivesse ruim da cabeça e não das pernas, que Grace Kelly é a melhor coisa que aconteceu em sua vida. Stewart resmunga.
Noutra cena ele e Grace comparam suas vidas e como suas vidas poderiam ser, se por ventura unidas.
Grace, incontestavelmente, representa no filme o ícone e o ápice da mulher moderna da década, ela conhece e trafega na nata da efervescente metrópole ao passo que ele é o cidadão do mundo, errante, aventureiro, com uma câmera na mão e a indemovível idéia de jamais assentar-se.
Enquanto isso, enquanto esses debates acontecem, o hábil sistema de cortes de Hitchcock mostra passo a passo os indícios de um “crime da mala”, desses em que o perpetrador se vale de uma lâmina para recortar o cônjuge. Nada disso, em hipótese alguma, é exposto para a câmera. A coisa é mostrada na base de vestígios de gestos captados por Stewart, para serem no devido tempo avaliados e concluídos. E mesmo assim ele permanecerá na dúvida até, quase, o desenlace final. São as peças sendo juntadas, uma a uma.
Conjetura-se que, na época, além do debate sobre a questão moral - o fato do suposto herói ser um voyeur, a América macartista desperdiçou energia inquietando-se nas poltronas face o reflexo de sua própria postura bisbilhoteira.
- Você deveria olhar para você mesmo – exclama a enfermeira, repreendendo seu patrão.
A verdade está sempre dentro e fora.
Hitchcock teria dito, mais de uma vez: “meus filmes colocam o crime no lugar que lhe é devido – dentro de casa”.