QUEM É ESSA MULHER?
Quem é essa Mulher?
por Lílian Maial
Acabei de sair do cinema. Assisti ao filme Zuzu Angel, brilhantemente estrelado por Patrícia Pilar.
Já conhecia, como todos os que foram adolescentes entre os anos 60 e 70, a história, uma vez que foi baseada em fatos e pessoas reais. Cheguei a vivenciar um pouco a época, embora ainda criança, mas saí do filme com um peso no estômago, uma sensação de vulnerabilidade, de pequenez e, de certa forma, de alívio.
Não posso dizer que vivemos hoje num mundo perfeito, que habitamos um paraíso, porém não me parece ter havido, em nossa história nacional, período tão vergonhoso, tão aviltante, tão desumano, tão torpe, quanto os anos da ditadura.
Não há nada pior que a falta de respeito às individualidades, às liberdades de opinião, quer políticas, religiosas, sexuais. Idéias estão aí para serem discutidas. Caminhos, muitos há. E a força é mister dos incompetentes de idéias, dos pobres de inteligência, dos covardes, que agem pelas costas, infiltrados, disfarçados, por vias indiretas.
Não tive parentes seqüestrados, tampouco torturados. A minha família nunca teve grandes nomes na vida nacional, muito menos expoentes, até porque meus avós e bisavós eram imigrantes ou filhos deles, e deram muito duro pela nossa terra, para sua sobrevivência. Mas a sensação que o filme passa é de que aquela realidade não está tão distante assim de nós. Os figurinos me eram familiares, a moda, os carros, os objetos de decoração. Vi ruas que freqüentei na infância e adolescência, e por onde ainda hoje passo com meus filhos. Vi o interior de instituições as quais ainda me arrepio ao passar na porta, de onde ainda escuto gritos e gemidos de dor e perplexidade, de impotência e decepção, de vozes brasileiras que apenas queriam que o povo fosse livre, de fantasmas torturados, que ainda pairam sobre as urnas e as falácias, a cada nova maracutaia, a cada nova eleição, a cada nova aviltação do povo.
Senti a dor dos jovens assassinados. Senti o desespero de tantas mães de filhos de porões, que já sabiam, desde o primeiro dia, o destino selado de seus filhos da pátria.
Senti a fragilidade do ser humano. A maldade que esses mesmos corpos delicados são capazes de infligir em seus semelhantes.
Senti a vulnerabilidade dos sistemas de governo, quando à mercê de coligações estranhas e obscuras.
Sufoquei um grito interior, misto de revolta, medo, surpresa e saudade.
Senti a infinita tristeza da mulher, que em todas as ocasiões, notadamente naquelas aliadas a ódios coletivos, é molestada, violentada, submetida, humilhada de todas as formas, apenas por ser indefesa, por ser a mãe do mundo, por ter a capacidade invejada de poder gerar. Na primeira oportunidade, é a mulher a vítima maior de abusos, quase todos sexuais. E isso ficou bem claro nos tipos de tortura que as estudantes sofreram durante a ditadura, assim como no nazi-fascismo, no comunismo, nas guerras, nas ocupações.
Saí do filme com o peito dolorido, com os seios em carne viva, com as entranhas violadas, com uma náusea oriunda da repetida constatação do lado cruel da raça humana, da sua capacidade, em nome de algo inexplicável logicamente, de cometer atos insanos, casualmente justificados pela obediência a algum tipo de poder ou crença.
Saí, por outro lado, feliz por ver que hoje temos o direito de escolha, e que essas escolhas devem ser muito conscientes, pois em nosso próprio Hino Nacional – hoje tão esquecido em seu real significado – cantamos por décadas e décadas, para nossa pátria, que nós, seus filhos, não fugimos à luta. Em nosso Hino da Independência, que morreríamos pela pátria livre. E rememorei essa luta e tantas mortes, para que hoje eu e meus filhos pudéssemos simplesmente ter o direito de escolher.
E que nunca ninguém se esqueça disso!
Seria muito bom que todos os brasileiros pudessem ter acesso a esse filme. As interpretações de todos os artistas foram muito convincentes, esforçadas, vividas, mas o destaque, sem dúvida alguma, vai para Patrícia Pilar – personagem título do filme – e para Othon Bastos e uma série de outros intérpretes masculinos, que incorporaram os personagens militares, pela verdade atenuada que conseguiram passar da dura realidade daqueles anos.
Destaque para a cena do desfile, quando Zuzu tímida, mas nobremente desfila sua dor, seu luto, sua saudade.
Destaque para o figurino, cenografia e uma direção primorosa.
Certamente que o filme não pretende explorar a tortura, mas o outro lado da ditadura, o outro lado das arbitrariedades, que nunca é citado em quase nenhum filme, que é o dia seguinte, o mês seguinte, os anos seguintes de quem perde um ente querido em tão nefastas circunstâncias.
Destaque final para a esplêndida, contundente e absolutamente osmótica música-tema, de Chico Buarque, que encerra a película como um réquiem à memória de Zuzu e Stuart Angel, e a todas as mães de filhos desaparecidos.
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