“O sol é para todos” (To kill a mockingbird)
“O sol é para todos” (To kill a mockingbird)
Há uma aura de decência nessa obra, uma aura do uso benigno de palavras juntamente com o sentido maior que as acompanha, algo que não corta para vários lados ou tampouco se esgueira por labirintos.
Na realidade que cerca os bastidores, ou antes, ou melhor, no espaço que separa a obra do público, a palavra de ordem é que a palavra só se preste ao cinismo, ao desdém, e aos vários matizes da ironia.
Essa realidade tem força e pretende forjar a opinião alheia. Fracassou, porém, perante o livro de Harper Lee, que vendeu 9 milhões de exemplares nos primórdios dos 60, na América.
Robert Mulligan e Alan J. Pakulla se aventuraram a transformá-lo em filme, em 1962.
Harper era a arredia intelectual amiga de Capote, e quando todos pensaram que ela bateria o pé ante a intenção dos realizadores ela aplaudiu, tendo na seqüência presenteado Gregory Peck com o relógio de seu pai. Peck recebeu o Oscar por protagonizar essa obra. Ele disse que, durante a cerimônia, seu susto foi tão grande ao perceber a premiação que sentiu, vinda do nada, uma pancada na cabeça. Também disse que o relógio que ganhou de Lee teve importância superior a estatueta.
To kill a mockingbird, traduzindo, “como matar um sabiá”, surge no contexto para ilustrar um ponto de vista. Algo como, “certas coisas na vida são tão profanas como matar um sabiá”.
A história gira em torno do advogado viúvo (Peck), pai de duas crianças na produzida Macomb de 1932. Esse advogado defenderá na corte um afro americano acusado injustamente por uma doidivanas e seu bêbado progenitor. Trata-se de um dos dentes da trama, pois as grandes estrelas do filme e a própria tessitura que a tudo anima estão centradas no casal de filhos, seu cotidiano e as raízes que lançam nos verões vividos em Macomb com o garoto da vizinha, os conflitos no colégio, o vizinho assombrado (Robert Duvall) e a relação com o pai.
A aura mencionada no início está desligada da patética moral que muda de forma a cada seção temporal e faz parte mesmo do perene correto, presente, mesmo que às vezes invisível ou sem defensores, o tempo todo desde que tudo começou a (a evoluir) por aqui.
Quem narra a história é a caçula de Peck, provável alter ego da autora e, diante do que se apresenta, uma grande sacada esse olhar de uma menina de 6 anos sobre racismo, injustiça, outras formas de preconceito e suas subseqüentes fatalidades. É o olhar sem rótulos – as coisas são como são e cada dia novas formas se tornam reais ou ilusórias, derrubando velhas expectativas para o nascimento de outras.
Existe uma peculiaridade em Macomb – não é uma cidade real mas também não é um monte de papelão simulando uma cidade. Alguém descobriu que em algum lugar uma cidade seria cortada ao meio, algo relacionado a uma obra pública, e fizeram as contas. Construir a Macomb de fachada custaria 125.000 dólares. Pegar as ruínas de uma cidade real custaria 25.000. Pode perceber que, na maior parte das vezes, o propósito de fazer contas visa um numerário de menor montante.
Os candidatos, mesmo que inconfessos, ao Grecim 2000, vão constatar que a dupla de crianças Mary Badham e Phillip Alford vivem com o perfeccionismo de serem “orientados” mas não dirigidos – uma das grandes descobertas da direção - e o que se vê na tela são crianças agindo como crianças, longe, portanto, de um sistema de crenças ceifador de gestos. Pode-se colocar palavras em suas bocas mas não se consegue aquela desenvoltura inata com uma marcação no chão.
Enfim, senão para os candidatos ao Grecim mas aos fãs de um cinema sem sustos e jogadas magistrais, Peck e Cia. mostram ao mundo um mundo de retidão e a pequena saga desenvolvida por Harper soa como vento de outrora, mostrando o doce retrato de uma infância fora de cogitação nos dias de hoje, mas que deixou uma saudade indelével nos que tiveram a fortuna de vivê-la.