“Crepúsculo dos Deuses” (Sunset Boulevard)

“Crepúsculo dos Deuses” (Sunset Boulevard)

O papo é o seguinte: difícil dizer como as coisas estão por aí, na questão cursos, faculdades, oficinas, etc., de teatro. Por aqui transbordam. Tanto, e de tal forma, que se os futuristas do curto futuro apregoam que seremos a maior população de velhos depauperados da nossa história, não seria incorreto afirmar que graúdo será o contingente de quarentões e quarentonas profissionais na arte da dramaticidade encenada.

Cinema conta com isso, em maior ou menor grau. E, Gloria Swanson simplesmente dá show de interpretação em “Sunset...”. Assisti-la, portanto, deve caber no bolso das obrigações positivas de todo aspirante.

Traçando o meridiano geral, um roteirista com a carteira vazia e se esquivando dos credores chega por acaso numa mansão de aspecto abandonado. A mansão tem dona. A dona, dona de uma perspicácia panorâmica, requisita seus serviços, já que ela mesma está há séculos burilando um roteiro.

Respectivamente, William Holden vive o roteirista e Gloria Swanson o papel da tresloucada Norma Desmond, rica, envelhecida e congelada no passado de glórias oriundas da época do cinema mudo.

“Sunset...” tem histórias e histórias, referências em cima de referências, homenagens e homenagens.

Colocando alguma ordem no conteúdo dessas duas linhas, a maior história está centrada em Billy Wilder que dirige, co-roteiriza, e, dizem os experts, muito da sua própria trajetória está calcada nas falas, sobretudo nas de Holden.

Billy é o vencedor que saiu da Polônia, zanzou pela Berlim dos anos 20 sem conseguir vender um único roteiro, foi dançarino de tango para senhoras desacompanhadas nessa mesma Berlim, rodopiou mais um pouco, teve a luz do simancol para enxergar que aquele negócio de nazismo seria um péssimo negócio para ele, chegou na América com uma mão na frente e outra atrás, sem conhecer a língua, aprendeu na marra, e nos anos 40 tornou-se um dos mais requisitados diretores de Hollywood.

Holden chega na casa de Norma Desmond para presenciar o enterro de um chipanzé, ganhar um quarto na edícula e ver literalmente seus pertences trazidos, de seu apartamento para dentro do próprio quarto, da noite para o dia. Com isso, Norma quis dizer: eu pago, mas você fica aqui.

Nos anos 80 “Crepúsculo...” foi incluído na primeira lista de preservação de filmes da Biblioteca do Congresso e nos 90 considerado o décimo segundo melhor filme rodado na América pelo American Film Institute. Indicado para onze Oscars, recebeu três: melhor direção de arte preto e branco, melhor trilha sonora e melhor roteiro. Trata-se do roteiro que imortalizou a fala: “eu sou grande, os filmes é que ficaram pequenos”, esvaída dos lábios da injustiçada e caso à parte Gloria Swanson.

Um dia depois do outro o roteirista Holden começa a sentir o que significa o dia a dia, ou antes a sua condição de entregue à fortuna e aos cuidados da excêntrica atriz, é a condição do “por dinheiro”, secularmente conhecida como prostituição. O olhar do vendedor para Holden na loja de roupas em Beverly Hills diz tudo e mais um pouco sobre esse percalço da vida, que o próprio Wilder teria experimentado na Europa entre guerras.

Holden contava com 32 anos e já havia participado de 25 filmes com papéis de pouca significância se comparados com esse personagem fraco, que faz da soma dos vacilos o caminho da própria sorte

A homenagem ao cinema mudo e seus astros é no mínimo ímpar na maneira em que é tratada, Norma/Swanson gesticula além do normalmente concebido, afinal, durante sua estada na sétima arte inexistiam microfones e assim inexistia a fala, os gestos acentuados substituíam os diálogos. Personagens lendários dessa época são reduzidos a uma mesa de baralho, interpretam a si mesmos e são chamados por Holden de bonecos de cera. É o espírito esportivo dos californianos em favor do super cinema de Wilder, pois Hedda Hopper e Buster Keaton estão à mesa contando cartas, silenciosamente. Na visão dos experts, estava em jogo a versão do diretor sobre a vida em Hollywood, doce e ao mesmo tempo implacável.

Na trama, Holden estava de malas prontas para voltar para casa pois, se você não fez sucesso até os 32 anos, então esqueça. Norma tinha sido um ícone mundial durante sua juventude mas, na mentalidade de 1949, se você tem 49 anos e fez sucesso, formidável, viva de saudades porque sua vida acabou. Esse é um indiscutível retrato desse então reinante estado mental e grande parte da força da história está centrada nisso, algo, no entanto, impossível de se pensar nos dias que corriam.

Norma se apaixona pelo roteirista, só ele não vê, comemoram a passagem do ano na presença do mordomo e dos músicos enquanto ele indaga onde estão os convidados, o mordomo é uma peça de valor na âmbito das referências e o tipo de informação que vale a pena reter para o caso de assistir o filme pela segunda vez ou para traçar um paralelo entra as culturas.

Figuras de cera do cinema mudo na fervilhante Cidade Das Redes não faltavam, a veia de aço do cineasta Billy chuta o balde das formas ao colocar Swanson numa possível versão de si mesma, vide o currículo da personagem Norma, “que era carregada no colo, do set ao camarim”, só que a personagem vive enfiada num museu repleto de fotografias suas quando moça, no auge da carreira, e passa horas e horas na sala de estar assistindo seus filmes projetados pelo mordomo.

Na vida real Gloria May Josephine Swanson, nascida em Chicago em 27 de março de 1899, estreou na indústria em 1914 e parou em 1932 com a marca de 68 filmes. Ocorre que Gloria, diferente da personagem, pôs a mão na massa, prosseguiu no cinema falado num ritmo mais pausado e mergulhou em programas de rádio e TV, sendo uma das poucas celebridades holiudianas a ter duas estrelas na Calçada da Fama, uma em virtude do cinema, e outra pela televisão.

Já o personagem Max, o mordomo, fiel escudeiro e ex-marido, na vida real, é Erich von Stroheim, diretor de peso nos anos do cinema mudo, tendo inclusive dirigido vários filmes de madame Swanson.

Gloria mostra uma atuação arrasadora nesse engenho de Wilder e foi indicada ao Oscar mas não levou. Seu último trabalho foi “Aeroporto”, ao passo que o último trabalho de sua personagem foi meter 3 balas no acomodado Holden e descer as escadarias de sua casa achando que Cecil B. DeMille, que também interpretou a si mesmo noutro trecho desse espetáculo, estaria à sua espera para exclamar: Luzes, câmera, ação!

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 30/04/2010
Reeditado em 21/11/2012
Código do texto: T2228762
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