“Nascido para matar” (Full Metal Jacket)
“Nascido para matar” (Full Metal Jacket)
Em 1987 a ditadura respingava ainda seus cacoetes no país pseudo liberto e a “tradução” do título deve ter sido uma coisa de última hora, o encarregado viu a foto do capacete de Modine e pensou por um instante: por que não?
Nascido para filmar, definitivamente, deve ser o nome esotérico de Stanley Kubrick. Escrito com riscos e bolinhas num alfabeto intergaláctico e sempiterno.
Se essa é a sua primeira turnê, duas pérolas de 1,99:
a. “Dentro de todo vietnamita existe um americano louco para sair”.
b. “Deus nos ama, pois todos os dias enviamos almas fresquinhas para o céu”.
Se essa é a sua segunda turnê, é mais do que válida a lembrança de que Matthew Modine faz um soldado jornalista, que escreve no Listras e Estrelas, um jornaleco da infantaria cujo mote é “o primeiro a partir e o último a saber”, ele sabe manejar uma arma, tem um broche na lapela do “peace and love” e no seu capacete está escrito, da maneira mais grosseira possível, “born to kill”. Quando um coronel se depara com o conjunto, indaga se isso se trata de insubordinação. Modine responde que se trata apenas da dualidade do ser humano.
Kubrick nasceu em Nova Iorque e aos 15 anos teve uma foto sua publicada no jornal. Fotografia de sua autoria, bem entendido, um flagrante do cotidiano, tratava-se da morte de Roosevelt e alguma coisa captou seu olhar, a manifestação de um transeunte qualquer e... clique. Não haveria de ser qualquer foto.
Na opinião de Spielberg, ainda que esta não seja indispensável, estamos falando do maior cineasta de todos os tempos.
A única novidade de se assistir “Full...” de novo é a mesma novidade de poder ver a sua pintura predileta, seja ela Van Gogh ou Tarsila do Amaral.
“Nascido...” é um grande teatro, uma grande paródia e porque não apelar ao raso verbo para dizer, uma grande “tiração de sarro”, usando a guerra como pano de fundo para produzir um extrato de humor mais do que disfarçado, não seria sequer um humor negro mas algo muito além, algo dotado de um senso perceptivo e ao mesmo tempo plástico, por assim dizer sem paralelo, beirando o único. Única também é a sua visão do Vietnã, urbana e com tanques, ao invés de matas, mosquitos e zarabatanas...
A prostituta que se aproxima de Modine plus música no fundo, o plano aberto mostrando caracteres asiáticos e marcas famosas ocidentais, ela atravessa a rua e vai ao seu encontro, aquilo tem a duração exata que passa uma rasteira no ritmo dos filmes de arte, Modine diz para o colega que metade das putas são informantes do inimigo e a outra metade está tuberculosa, melhor o amigo procurar uma que esteja tossindo. As piadas expostas no filme, entre os “pracinhas”, por exemplo, são politicamente incorretas, para se dizer o mínimo, e hoje, quiçá, os estúdios pensassem duas vezes antes de soltar a verba.
Modine é mandado para a frente de batalha, algo pelo qual ele e sua dualidade estavam ansiando. Durante o vôo de helicóptero, outro soldado atira à esmo em civis, o jornalista pergunta se ele mata mulheres e crianças, ele ri e diz: “claro, a guerra não é mesmo um inferno?”. Agora, a grande questão é que isso fica muito mais ostensivo aqui, e agora, para você que lê, do que para o espectador assistindo a cena. Nela não há nenhum elemento manipulativo, tipo um pedaço de trilha tensa ou efeitos, cortes rápidos, closes, etc. Nada. Eles apenas conversam em pleno vôo.
Kubrick devia ser um cara ciente da sua dimensão, pois para ter lançado um filme desses, em plena era Swarzeneger e Platoon, os intensos 80, qual...
Praticamente metade da obra trata do treinamento dos soldados e se analisar bem essa metade, sobretudo uma análise do ponto de vista da plataforma em que nos encontramos hoje, plataforma 2010, local que Kubrick já havia chegado, muito antes de nós, qual... Aquilo não passa de um ordenado teatro de balcão e ordem é justamente o xis do show, todos falam gritando, diálogos inexistem exceto ao fim dessa seção, no banheiro, quando o soldado surta. Até então são 40 minutos de filme cravados. Deve ter desapontado muita gente que esperava ver um açougue e se deparou, na sua melhor forma e em seu penúltimo trabalho, com o autor de “Dr. Strangelove”, uma sátira que aturdiu as cabeças fechadas cá dos trópicos em pleno regime militar. Tratava-se um filme censurado. As coisas com que se preocupavam os censores...
“Full Metal Jacket” é a expressão usada para o projétil "encamisado" por uma liga metálica mais resistente. Assim, a brincadeira do Comunicador Kubrick começa no título, como se um amontoado de letras fosse capaz de perpetrar a machadinha.
Na seção Teatro de Balcão, acontece uma verdadeira aula de dramaturgia aos brados, com o sargento Hartman (Gunny Ermy) fazendo os rapazes nascerem para a matança, sobretudo aqueles que não têm tino para a coisa, como o infeliz Leonard (Pyle), recebendo corretivos pela sua falta de asseio e surpreendendo a todos graças a sua perícia com o rifle. Ele não fará, porém, a viagem ao exótico Camboja em virtude do se chamaria hoje de temperamento bipolar.
Modine observa impassível, com seu broche e seu capacete, a guerra quase urbana que mescla cabelos loiros com olhos puxados, que é também observada por uma equipe de cinegrafistas. Esteticamente, nesse ponto, ocorre uma mistura de “Soldado Ryan” com “A Noite Americana” e as entranhas do livro de Gustav Hasford, The Short Timers, prosseguem através das falas daqueles que se arrastam na lama e fazem os mais inverossímeis trocadilhos, pois em meio a sandice instituída há que se gracejar um pouco, para sobreviver mais um par de segundos.
Fazendo as contas, a única ação contínua é a do final, e a grande canseira que o grupo de soldados vai tomar será de uma mulher, uma adolescente ou perto disso, que por pouco, não dizima o pelotão inteiro.
De acordo com uma veterana da Guerra do Golfo, “Full Metal...” se tornou um filme que integra a cultura de treinamento das novas levas de legionários americanos pelo mundo a fora. Ela nos conta, baseada na própria experiência, que em geral mulheres não entram em combate. Mas quando entram...