“Colateral” (Collateral)

“Colateral” (Collateral)

A mágica do “Colateral” começa e termina com M, de Michael Mann. Tem também duas letras que ajudam sobremaneira na realização deste hocus pocus: T, de Tom Cruise e J de Jaime Foxx.

As aparências enganam. Está há léguas de se tratar de um filme sobre um assassino de aluguel (Cruise) que entra no táxi de Jamie Foxx fazendo o motorista refém e assassinando pessoas.

“Uma corrida selvagem” diz o “Entertainment Weekly”. Ele se enganou. Deve ter se confundido com alguma campanha política. Selvagens jamais saberiam que Miles Davis largou a Juilliard School para se tornar discípulo de Charlie Parker. Durante três anos. Selvagens jamais saberiam, sequer, quem possam ter sido Miles ou Charlie. Muito menos a duração do encontro entre o mago e o futuro bruxo.

Mann sabia disso. Ele apresenta alguns selvagens durante o espetáculo. Como na cena em que Jamie está atado ao volante e começa a pedir socorro. Um bando de pós adolescentes aparece. Ele acha que é a sua salvação mas são trevas. Cruise dará cabo deles logo em seguida e essa cena foi super exposta pela mídia na época do lançamento. Isoladamente, ela angaria pouco significado. No conjunto, ela enriquece ainda mais seu personagem. Mostra que alguns são selvagens, vivem à esmo e titubeiam. Outros são cirúrgicos e por conta disso sua eficiência só apresenta perigo para quem está na sua planilha. Exceto haja algum contratempo.

Logo no início, acredito que a título de travessura, Mann coloca o Carga Explosiva1, 2 e 3 Jason Statham como o gajo que entrega a valise para Cruise no aeroporto.

“Colateral” é um filme sobre as ilhas, sobre a necessidade urgente que cada um de nós tem de construir sua própria bolha de proteção, contra a insurgente e às vezes camuflada selvageria cotidiana. Jamie tem a fotografia de uma ilha no quebra sol de seu táxi. Ele diz para a elegante advogada Jada Pinkett Smith que tira férias 12 vezes por dia, ao volante mesmo. Basta olhar para foto e se transportar para lá. A corrida de Jada até o centro comercial, na verdade o escritório da promotoria, no centro de Los Angeles, já é um colírio de cinema com a chegada do crepúsculo e a cidade vista do alto com seus prédios e suas luzes. A fotografia de Dion Beebe e Paul Cameron não sai dos trilhos da primeira à última cena. E também nessas primeiras cenas a trilha acertadíssima de James Newton Howard nos conta que vivemos numa época cujos paradoxos, sejam eles quais forem, conseguem descer pela nossa goela se o ritmo, a cor e a melodia estiverem harmonizadas.

Jada sai do táxi e entra Cruise, como que por acaso, como as coisas acontecem. Jamie já havia dito que quando um sujeito entra no seu táxi carregando uma espada, para ele é um sushiman. O novo passageiro tem cabelos grisalhos, alega detestar L.A. e carrega uma valise. Dentro em breve Jamie irá descobrir, como o próprio espectador, que seu passageiro não veio fechar contratos imobiliários e falar com amigos, ainda que Cruise venha a dizer que esses sujeitos, os que ele apaga, devem ser amigos de alguém.

O tino cinematográfico de Mann e seu conhecimento sobre os bastidores policiais vêm sendo corroborados através de sua obra desde “The Heat”, que ele mesmo escreveu até o inteligente “Miami Vice”, cujo making off é um documentário imperdível sobre locações reais. Mark Ruffalo é o policial que começa a juntar os pontos sobre cadáveres que aparecem no necrotério com características muito similares e na mesma noite. Suas idas e vindas mostram as razões de um policial ter de funcionar 24 horas por dia. Algo está em andamento, mas não se sabe ainda o que. Suspeita-se de um táxi, mas L.A. tem 4.000 táxis, e nessa hora um bom roteirista (Stuart Beatie) cria um ótimo gancho para uma lenda urbana – Ruffalo começa a se lembrar de uma história em que um taxista havia matado 4 pessoas e depois se suicidado. Sempre houve a suspeita de que havia mais alguém.

Cinema de ponta carece de editor qualificado, nesse caso foram dois, Jim Miller e Paul Rubel, um corpo é jogado no porta malas e antes mesmo deste se fechar vemos uma garrafa pet distribuindo água no pára-brisa. Essas situações de edição se repetem com a química que organiza para fluir, vide os primeiros diálogos entre Jamie e Cruise, tomadas laterais distintas entre passageiro e motorista, as inserções dos helicópteros sobre a metrópole considerada a quinta economia do mundo, as jogadas, por assim dizer, no clube de música eletrônica.

“Colateral” é também um drama sobre sonhos não realizados e nossa sensibilidade face a essa triste constatação. Se em algum momento o taxista vai surtar, e ele já teve diversos motivos para tanto, será na declaração do implacável Cruise: você está há doze anos dirigindo esse táxi, para um dia ser proprietário de um serviço de limusines que ofereça Mercedes a seus clientes? Poderia ter começado isso com um Lincoln...Você não quer realizar esse sonho.

Jamie tem a mãe no hospital e admite o receio de olhar para dentro da própria existência. Cruise respira ao mesmo tempo um código rígido e um cinismo com algum sal, graças talvez ao pai alcoólatra que infernizou sua infância. Os dois ficam como que hipnotizados ao verem um casal de lobos atravessarem uma avenida - algo deve ser respeitado e secretamente reverenciado. Evidente que uma, ou alguma relação surge entre ambos, além da famigerada carcereiro-encarcerado. Cruise salva a vida de Foxx e lhe lança um olhar “salvei sua vida, isso não estava no script”.

O cineasta in-loco Mann mostra um clube de latinos com uma segurança real de estarrecer, os únicos nascidos em solo norte-americano ali são elas, e estão à soldo, será onde Jamie Foxx fará o papel do matador, não com ações e sim com palavras. Outra lebre levantada pelo diretor é que o narco tráfico se utiliza de ex-agentes das comunidades de inteligência e isso fica evidenciado durante o balé de tiros na rave, detalhe para a ironia com a galera muito doida de ecstasy dançando e parte ainda sem perceber que a casa caiu, há mais uma vez o enfoque na segurança, ou se preferir nos seguranças e sua perícia em lidar com armamentos mostrando um rígido treinamento prévio.

Um mundo com muitas misturas que se recusam à mixagem e, no entanto, são amalgamadas pela brilhante ótica de um cineasta maior.

Começa inocentemente numa corrida de táxi com conversas banais, e passo a passo nos leva a conceitos, dentro de conceitos, envolvido por conceitos, que por fim não passam de reflexos, produtos e miragens deste início de século e milênio.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 26/03/2010
Reeditado em 03/12/2012
Código do texto: T2160721
Classificação de conteúdo: seguro
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