ELEMENTOS TRÁGICOS NO FILME “OTHELLO”
“É preferível ser completamente enganado do que abrigar a menor suspeita.” (William Shakespeare – Othelo, ato 3º, cena 6)
“Vê como é rápida a língua da suspeita.” William Shakespeare.
"Othello" é um filme de Oliver Parker, diretor e roteirista, produzido em 1995. Segue fielmente nos diálogos a poesia dramática shakespeariana. O personagem principal da trama é o mouro Othello (Laurence Fishburne), que empresta seu nome à obra. Ele se apaixona por uma veneziana, Desdêmona (Irène Jacob), com quem se casa, mesmo contra a vontade do pai da moça. Segundo as normas da época em que se desenvolveu a história, um mouro (do latim "maurus", que quer dizer "de pele escura"), descendente de árabe, não poderia casar-se com uma cristã, pois se isto ocorresse, escandalizaria a sociedade. É em torno dessa causa que se desenvolve a tragédia. Iago (Kenneth Branagh) é o personagem antagonista que causa toda a desgraça do casal. O vilão guarda dentro de si um ódio profundo pelo general mouro, devido este ter promovido Cássio (Nathaniel Parker) a tenente, por desconfiar de uma traição, por amar Desdêmona:
"[Iago] – Mas eu também a amo, não por simples concupiscência (...), é para saciar minha vingança, pois suspeito que o Mouro luxurioso pulou na minha sela (...): é mulher por mulher."
Além disso, Iago cultivava uma sede por poder, o que não tinha. Cássio era um jovem florentino sem nenhuma experiência na guerra:
"[Iago] – Ora, por minha fé, um matemático, um tal Micael Cássio, um florentino, um tipo quase pelo próprio inferno fadado a ser uma mulher bonita, que nunca comandou nenhum soldado num campo de batalha e que conhece tanto de guerra como uma fiandeira."
Mesmo assim, foi escolhido para o posto de tenente por ter sido um grande intermediário das relações entre Othello com Desdêmona. A partir deste episódio, Iago começa a arquitetar planos para destruir o casamento do mouro com a cristã e usurpar o lugar de Cássio. O resultado de tudo isso é a total destruição da vida dele, juntamente com sua esposa Emília (Anna Patrick), Othello e Desdêmona. Neste trabalho, analisarei os elementos trágicos que foram observados da obra cinematográfica. São eles: hýbris, moira, harmatia e catarse.
O primeiro elemento, hýbris, significa insolência, impetuosidade, violação, transgressão. A hýbris ocorre no momento em que o herói trágico viola a ordem estabelecida através de uma ação ou comportamento que assume como desafio aos poderes instituídos, como as leis dos deuses, da cidade, da família ou da natureza. No filme "Othello", este elemento aparece na transgressão do mouro e de sua amada aos costumes e valores vigentes em Veneza. Othello se coloca acima dessas tradições, não se importando com as consequências que, por ventura, pudessem recair sobre ele. Os dois se casam as escondidas, mesmo tendo consciência de que aquele ato era inaceitável perante a sociedade, principalmente pelo pai de Desdêmona. A jovem era branca, vista como pura, inocente, frágil, por isso o patrício Brabancio, seu pai, acreditava que ela estivesse sob efeito de feitiçaria:
“[Brabâncio] – O infame raptor! Onde escondeste minha filha? Infernal como és, decerto a enfeitiçaste.” E após conformar-se com o ocorrido, lançou sobre Othello uma maldição:
“[Brabâncio] – Cuidado, Mouro! Se olhos tens, abre-os bem em toda a parte; se o pai ele enganou, pode enganar-te.”
O amor entre Othello e Desdêmona origina-se de uma aproximação frágil entre eles:
“[Othello] – Ela me amou porque passei perigos, e eu a amei porque senti piedade.”, que os leva a um casamento precipitado que é destruído antes que a relação tenha tempo de se tornar estável ou, até mesmo, de ser efetivamente consumada. Já Othello, ao contrario, era visto como um estrangeiro, negro, de idade avançada e ridicularizado pelo “negrume de sua pele”, apesar de ter sido respeitado e considerado importante para os governantes de Veneza. Por estes motivos, Othello já tinha consciência de que se seu amor fracassasse, sua imagem poderia ser destruída. Ele infringe também a ordem da natureza, quando tira a vida de Desdêmona, por considerá-la corrupta e infiel, apesar de amá-la bastante. Remou seduziu Julieta e foi seduzido por ela, a ponto de se suicidarem. A atitude de Othello compara-se a de Eva, quando esta, induzida pela serpente, adquire a sede de igualar-se a Deus, conhecendo tanto o bem como o mal. Assim, transgride a ordem de Deus e come do fruto proibido da arvore do conhecimento.
A moira é o destino; encontra-se acima dos próprios deuses, aos quais não é permitido desobedecer-lhes. Esta é identificada no próprio nome de Desdêmona, que em grego quer dizer “desventurada”, prenunciando o destino que a aguardava:
“[Desdêmona] – Sois o dono de meu viver, sendo eu, pois, vossa filha. Mas também aqui vejo meu marido; e quando minha mãe vos foi submissa, preferindo-vos mesmo aso próprios pais, tanto agora pretendo revelar-me me relação ao Mouro, a quem pertenço. [...]. Eu amo o Mouro, para viver junto com ele, é o que proclama ao mundo toda minha ação violenta.”
Desdêmona ama Othello. Quer viver com ele e está decidida a enfrentar as conseqüências de sua decisão. A sua determinação e o domínio de sue destino são tão notáveis que ela não foge quando teria ocasião para isso. Pode ser qualquer coisa, menos uma vitima. Othello não tinha um destino traçado; nele não se encontra a fatalidade, a ação do destino claramente expressa, mas o temor e a desconfiança que o seguem por causa do que ouvira do pai de sua esposa faz com que ele próprio trace seu trágico destino de acordo com o que fora prenunciado, além da conspiração de um personagem mal, Iago. Não há uma identificação do destino do mouro; ele mesmo age fazendo com que a tragédia tenha o final que possui. O destino trágico dos personagens centrais está traçado desde o início. Prisioneiros de suas próprias limitações pessoais e sociais, são arrastados para ele e não podem mudá-lo. Othello, o general mouro de Veneza, é prisioneiro da cor de sua pele. Por seus dotes militares, é tolerado, mas não aceito pelos venezianos, que nutrem, com relação a ele, sentimentos racistas. Othello está ciente desse preconceito e se sente inseguro. Para dissimular sua insegurança, comporta-se de modo grosseiro e impulsivo, a ponto de intimidar sua própria mulher, Desdêmona. A insegurança de Othello faz com ele dê ouvidos às intrigas de Iago, que desperta seus ciúmes, insinuando que Desdêmona o traiu com Cássio. O ciúme se intensifica e culmina com o assassinato de Desdêmona pelo marido. Desdêmona não pode também fugir do seu destino, assim como Othello não pode fugir do crime e de sua autodestruição. Suicida-se deixando uma mensagem de autopunição:
“[Othello] – [...] Então a alguém tereis que referir-vos que amou bastante, embora sem prudência.”
A derrota de Othello acontece por ele não acreditar em seu destino ou por possuir fraqueza, que o afasta de sua virtude. Iago também não consegue escapar do destino certo e justo que o esperava. O mesmo elemento (moira) pode ser visto do destino de Adão e Eva. Quando Deis os criou, determinou-lhes um destino: seriam imortais e habitariam eternamente o Jardim do Éden. Porém, a decisão que tomaram, de comer do fruto proibido, fez com que o destino estabelecido fosse mudado. Foram lançados fora do jardim e tornaram-se mortais, ou seja, eles mesmos traçaram seu destino.
O principal erro de Othello não está no seu casamento que ia contra os princípios sociais, pois seu enlace matrimonial acabara por ser aceito pela sociedade e por seu pai:
“[Brabâncio] – Mouro, vem para cá. De todo o coração te dou aquilo que se já teu não fosse, eu recusara de todo o coração. Por vossa causa, minha joia, sinto a alma jubilosa, por não ter outra filha; tua fuga ensinado me houvera a ser tirano, pondo-o no cepo.”
A harmatia, que é a falha humana, está no erro do julgamento cometido pelo personagem ao estabelecer sua ação. Othello também era um ser desequilibrado, foge de um mundo medíocre. Othello é um homem corajoso, bom, justo e que amou demais; ele é admirado por muitos poderosos e isto o torna poderoso. O poder incita ciúmes em Iago por sua carreira de sucesso e vida amorosa estável. Iago procura, então, manipulá-lo para atingir suas fraquezas, suas falhas humanas, falhas trágicas: amor e confiança. É em conseqüência disso que Othello cai na desgraça. A harmatia é cometida de propósito, mas não objetivava maldade; o herói, afinal, admite que errou. A falha provém de suas qualidades, que o fizeram obter visibilidade:
“[Othello] – O que quiserem. Assassino honrado, se assim vos aprouver, porque fiz tudo pela honra, não por ódio.”
Um dos aspectos importantes do erro de Othello é seu amor exacerbado por Desdêmona. Então, Othello encontra-se nesta situação difícil: ele ama Desdêmona, mas o amor por si próprio e seu orgulho falam mais alto. Assim, o ato de matar é justificado pelo ciúme. Amando, ele se destruirá, pois este amor e demasiado grande e acaba por destrui-lo. Othello é forçado a matar para limpar sua honra, seu amor próprio; mas a ordem e o amor à Desdêmona o impedem de tal ato. Contudo, acaba matando-a e falhando gravemente ao cometer este crime. A falha de Iago foi sua dissimulação e desejo de conseguir seus objetivos manipulando a mente de Othello, sentindo ódio deste e tendo ouvido rumores que Othello o tinha traído com sua esposa Emília:
“[Iago] – Odeio o Mouro. Há quem murmure que ele o meu trabalho já fez em meus lençóis. Se é certo, ignoro-o. Pelo sim, pelo não, agir pretendo como se assim, realmente, houvesse sido. Ora vejamos como posso alcançar o lugar dele e enfeitar meu desejo com dobrada patifaria.”
Compara-se à harmatia a ção de Moisés, quando este feriu a rocha, não por maldade, mas por uma falha grave: a ira. Em conseqüência disto, foi punido, sendo impedido de entrar na terra prometida.
Por fim, o ultimo elemento analisado é a catarse. Ela se caracteriza como sendo a purgação das emoções e paixões, idênticas às das personagens, efeito que se pretende na tragédia, através do terror e da piedade que deve provocar nos espectadores. É também o fim da tragédia, ocorrendo por meio da mutilação ou da morte. A morte de Othello realmente purificou seus pecados. A sua desilusão é tão grande que julga que matar Desdêmona seria um ato de justiça, pois ela já tinha traído o pai, agora “a ele” e, provavelmente, trairia outros homens:
“[Othello] – Esta é a causa! Não vo-la nomearei, castas estrelas! Esta é a causa! Não quero verter sangue, nem ferir-lhe a epiderme ainda mais branca do que neve e mais lisa que o alabastro. Mas é fatal que morra; do contrário, virá ainda a enganar mais outros homens.”
Só depois da morte de Desdêmona e Emília é que Othello consegue ver a verdade. Iago passa então a ser a verdadeira fonte do mal, mas Othello sente-se impotente perante ele. A catarse está na forma como Othello morreu. Após tudo ser provado (a inocência de Desdêmona e de Cássio e a conspiração de Iago), ele sofre muito. Agoniza antes de sua morte. Faz uma comparação de sua morta à de um bicho impuro, para mostrar que ele morrerá como um maldito, sem ter chance de salvação:
“[Othello] – Contai-lhes isto tudo. E também que em Alepo, certo dia, um turco de turbante e malicioso bateu num veneziano e em termos baixos falou do Estado, e que eu, pela garganta detendo aquele cão circuncidado, o feri deste modo, assim... assim... (Apunhala-se.).”
Ele reconhece o grave erro que cometeu e, por isso, não deseja ser salvo. Othello antecipa o seu destino, suicidando-se e morrendo junto de Desdêmona. A catarse de Adão e Eva é percebida a inda nos dias de hoje. A humanidade passa por este processo de purgação dos pecados desde quando eles pecaram, comendo do fruto. A mulher ainda sente as dores do parto, por causa da falha de Eva. E continuaremos nos purificando, pois esta é a Via Crucis do Homem.