The passion, uma leitura crítica 2

Quando ainda criança a ouvir as histórias que meus avós contavam sobre a vida de Jesus, não dei importância devida àquele filho do Altíssimo-Profundíssimo que, segundo a tradição, através do corpo de Maria tinha sido encarnado a representar a divina história da objetivação do Amor entre os brutos – talvez mesmo “a mais sublime” representação carnal, objetiva, do Justo Verbo sobre a boa Terra prometida, aqui e ali devastada pela ignorância e pelo desamor, ainda presentes no espírito desumano.

Entretanto, como também previram as Escrituras, nunca mais esqueci aquelas narrativas que me contavam sobre os feitos de um Homem, um Verdadeiro Homem, afinal, a quem alguns reconheceram como “o próprio Deus encarnado”, o tal “Verbo tornado carne” sobre a presença de quem profetizaram antigos desde os primeiros registros do desenvolvimento de nossa civilizada Humanidade e de nossa possível pré-divindade, enquanto outros, com seus espíritos munidos de desumanas paixões, como cúmplices inconscientes do Altíssimo, tramavam a realização de Seu incômodo plano pretendido: a efetivação de Seu divino suicídio.

Sim, porque, espantosamente, milagrosamente, enquanto “Jesus”, Deus resolvera “matar-Se” através das mãos daqueles que, enquanto Seus perdoáveis ignorantes homicidas, denunciariam a “ingênua” perversidade dos que, confundidos com os “Verdadeiros”, representantes de “todo Poder”, os incitavam à efetivação de Sua “morte”.

Devemos nos tornar perfeitos como o nosso “Pai celestial”, aprendi, quando já um tanto mais perspicaz ao entendimento daquelas divinas sensações e certezas mais profundas que, então, inquietavam meu espírito quando entre a fé e as dúvidas, à superação das quais as Escrituras devem necessariamente nos estimular e orientar. Porque aos Verdadeiros cabe tão somente a difícil tarefa da imitação de Cristo – aprendi, embora não mais necessariamente como “cordeiros destinados ao sacrifício”, mas enquanto gloriosos representantes da administração celestial (essencialmente individual e coletiva, e somente nesta ordem) no tempo restante do curto tempo de todas as gerações vindouras, ainda presentes sobre a Terra.

Para tanto, entretanto, resta-nos ainda a realização de alguns pequenos sacrifícios.

Quanto aos judeus , na “Paixão de Gibson” – que se diz “católico ortodoxo praticante”, tendo dedicando Verdadeira adoração pela instituição familiar, recai mais uma vez sobre eles e toda sua cultura sectária o peso da responsabilidade pela humilhação, flagelação e assassinato de Jesus que, segundo suas tradições (as quais Jesus, como um mal judeu apóstata, não se cansava de contrariar), jamais deveria ter sido por eles reconhecido como “O Cristo”, “o Eleito” “Messias redentor” do “povo escolhido por Jeová” ao usufruto terrestre de Seu reinado celestial.

Contudo, as questões fundamentais ao bom entendimento da missão jesuíta são: o que é exatamente “ser judeu” ? Foram todos os judeus dos primeiros anos da missão de Jesus antipáticos à mensagem do exercício do Amor universal, promulgado (e sofregamente efetivado) por ele? São os judeus, hoje, dignos herdeiros da responsabilidade por seu assassinato? Seria Jesus substancialmente um judeu?

O filme de Gibson não foi produzido para responder a primeira questão, embora, como em outras representações da Paixão de Cristo (naturalmente de acordo com o conteúdo do Novo Testamento ), fiquemos sabendo que muitos judeus, desde a época de Jesus até hoje, secretamente se haviam convertido ao cristianismo vindouro.

Na “Paixão de Gibson”, entretanto, há (embora alguns críticos tenham pretendido contestável) a tendência a tornar-nos acusadores dos judeus como "assassinos de Deus”, que Se manifestara enquanto aquele atrevido carpinteiro Nazareno que ousava desafiar suas autoridades.

Não há como negar que Jesus, herética e despudoradamente manifestava desprezo às tradições judaicas, uma vez que, infelizmente, encontrou em muitas atitudes de seus representantes as razões das desumanas discriminações que seus sacerdotes conferiam àqueles aos quais deveriam demonstrar o tal "amor divino", expresso em jestos de tolerância e fraternidade universal.

Em The passion, por exemplo, Gibson determina que Maria, sua mãe, se aproxime de Jesus a convidá-lo para comer, depois de elogiar a mesa que ele acaba de terminar: “para homens grandes”, “ricos”, observa Jesus. Depois de algumas gracinhas entre mãe e filho, ela lhe pede para acompanhá-la à mesa, mas não sem antes lhe ordenar que retire sua roupa suja e lave as mãos antes de sentar-se para comer - não apenas uma mera tradição judaica, mas um simples gesto necessário de asseio.

Entretanto, enquanto ela lava as mãos de Jesus com a água de um cântaro que já carrega consigo, Gibson sugere que o super-Homem continue a fazer gracinhas com a mãe, mas dessa vez borrifando com as mãos um pouco d’água sobre seu rosto.

A cena que retrata tal singelo gesto idealizada por Gibson não quis nos passar somente a informação de que Jesus, apesar de cônscio de seu destino terrível, tinha lá seus momentos de descontração: fundamental e sub-repticiamente, creio a cena realizada a nos dizer do menosprezo que o Nazareno carpinteiro tinha pelos rituais – fossem eles a expressão de normas judaicas ou quaisquer outras.

No caso, a cena tem a função específica de nos dizer que Jesus ridicularizava até mesmo os rituais de asseio mais simples exigidos pela tradição judaica à física expressão manifesta de uma pureza espiritual, necessariamente conferida e exigida dos legítimos representantes dos Filhos do Céu.

Para Jesus, entretanto, como também para outros antes dele, a Verdadeira pureza era exclusiva expressão da Vida e Sua capacidade de engendrar-Se profundamente em Espírito e, de forma mais superficial, em nós à Sua realização ética, moral e cívica. Porque nossa pátria é mesmo o céu onde uma Terra flutua - como nos fez ver o cineasta James Cameron em seu recente "Avatar". Além disso, não há o que contestar: “o Espírito é o que vivifica".

Outra contravenção cometida por Jesus das leis judaicas era sua afirmativa de que “O homem não foi feito por causa do Sábado, mas o Sábado por causa do homem ” – como advertia o Nazareno àqueles que o repreendiam por se dedicar à prática de boas ações num certo “dia santo”, entre muitas outras que desaprovavam.

Porque tinha o espírito conscientemente voltado à consideração da presença da Eternidade, Jesus, divino representante estava além da tirania desnecessária dos calendários, ou de quaisquer outras invenções "humanas" que porventura tentassem destituí-lo de sua condição de legítimo representante do Amor no meio de muitos que, se bem considerados, de modo algum deveriam ser reconhecidos humanos.

Porque, mais tarde, durante o previsto inevitável derramamento do sangue de Jesus, eles denunciariam a força de uma remanescente bestialidade.

Continua