The passion, uma leitura crítica
“Nas misteriosas disposições da profundidade, quem é deveras Czar, quem é rei, quem se pode jactar de ser um mero criado?”
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“Não há na Terra um ser humano capaz de declarar quem é, com certeza. Ninguém sabe o que veio fazer neste mundo, a que correspondem seus atos, seus sentimentos, suas idéias, nem qual é seu nome Verdadeiro, seu imperecível Nome no registro da Luz”.
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“Bloy (repito-o) outra coisa não fez senão aplicar à Criação inteira o método aplicado à Escritura pelos cabalistas judeus. Estes pensaram que uma obra ditada pelo Espírito Santo era um texto absoluto: vale dizer, um texto em que a colaboração do acaso é calculável em zero. Essa portentosa premissa de um livro impenetrável à contingência, de um livro que é um mecanismo de propósitos infinitos, moveu-os a permutar as palavras escriturais, a somar o valor numérico das letras, a ter em conta a sua forma, a observar as minúsculas e maiúsculas, a buscar acrósticos e anagramas e a outros rigores exegéticos dos quais não é difícil zombar”.
(...)
“É duvidoso que o mundo tenha sentido. É mais duvidoso ainda que tenha duplo ou tripulo sentido, observará o incrédulo. Entendo que é assim é; mas entendo que o mundo hieroglífico postulado por Bloy é o que mais convém a dignidade do Deus intelectual dos teólogos”.
Jorge Luis Borges em O Espelho dos enigmas
(Nova antologia pessoal, págs. 186 e 187 – DIFEL, SP – 1982)
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Demorei a ir ver o filme The Passion (Paixão de Cristo), do ator e diretor norte-americano Mel Gibson, por pretender me poupar de rever aquelas novas cenas que ainda antes da estréia do filme nos provocaram certo constrangimento em suas exibições parciais durante a promoção da obra: cenas da violenta flagelação de Jesus que, depois, foram distribuídas na íntegra nos milhares de salas de Cinema espalhadas mundo afora, sessão após sessão a chocar a maior parte da população mundial.
Como nós, os personagens do Cinema são também filhos da Luz, que sempre iluminou as trevas à projeção da Vida.
Entre o nada e o Ser é preciso sentir o eterno próximo segundo como sempre “o primeiro” que o Tempo nos concede ao usufruto da Vida nas invenções de Suas múltiplas personas. Mas, ao mesmo tempo, a todo o momento o relógio nos faz lembrar que nossa vida se esvai .
Dizem muitas coisas: dizem que a Vida imita a Arte, que a Arte imita a Vida... Eu digo que todas as “mentiras” produzidas pela Arte são realizadas graças à consciência que os artistas têm – ou que deveriam ter – de sua capacidade de ajudar a produzir uma possível nova geração de crianças, homens e mulheres, hoje (sempre hoje) talvez mais dispostas a realizar o divino sonho da construção de uma feliz “Terra Prometida” para todos.
Assim, procurar sentir o significado das imagens produzidas por Gibson é fazer um significativo esforço de inteligência à apreensão de sua gênese original – sempre a considerar que há variações entre o entendimento dos espectadores sobre o que compreendem e entre aquilo que os artistas cineastas querem expressar com as imagens que constroem.
A maioria das produções cinematográficas de trinta anos atrás – e as de antes delas – refletia o nível de preocupação de uma cultura que prezava por expressar à sociedade daquele tempo seus ideais de pureza e moral judaico-cristãs, sempre em montagens pudicas onde, por exemplo, reclamávamos da mentira evidente daquelas cenas de bang-bang nos filmes de faroeste, que os diretores daquela época não procuravam disfarçar. Porque bandidos eram mortos por revólveres que nunca descarregavam, sem que víssemos os malfeitores derramando sequer uma única gota de sangue de seus ferimentos (os quais também não víamos), ou seus últimos suspiros necessariamente precedidos por aquelas contorções violentas, angustiantemente convulsivas e inacreditáveis explosões hemorrágicas presentes nas produções atuais, muitas delas com o próprio Mel Gibson a protagonizar, às vezes, carrascos e, às vezes, vítimas de umas tantas outras flagelações sofridas ou aplicadas a outros por seus personagens – como nos violentos filmes Coração Valente e O Patriota.
Andaram chamando Gibson de “o exterminador”. Pelo que se tem notícia, seu filme levou para a terra dos mortos quase uma dezena de seus espectadores ao redor do mundo – fora grande maioria daqueles que se derramaram em lágrimas até mal-estares incontroláveis, que os obrigaram a abandonar as salas de projeção antes do fim da fita, todos provavelmente munidos de doses de empatia suficiente para fazê-los compartilhar com o massacrado Jesus de Gibson todas as suas dores.
Mas, a considerá-las apenas expressões da arte de representar, toda a extensão prolongada da sangrenta estética de The passion foi realizada por Gibson com sucesso a nos fazer participantes de todo sofrimento do Salvador – como aquele personagem do povo judeu num determinado momento do calvário, injustamente destinado a ser o bode expiatório a representar os juízes e carrascos judeus de Jesus. Para puni-los, Gibson, deus de sua criação, o escolheu aleatoriamente entre a multidão à obrigação de carregar a cruz de Jesus e dividir com ele aqueles angustiantes momentos de insuportável tormento.
A despeito de nossa persistente ignorância às razões essenciais da produção e reprodução da Vida (esse "Deus-Pai" ou, para heréticos, essa “Deusa-mãe” a quem, em níveis individuais, devemos a oportunidade de Seu temporário usufruto), é preciso concordar que aqui e ali evoluímos; e então, num impulso ainda inconsciente, temos agido de forma menos desumana e temos desejos mais humanos em relação aos outros. Foi com o paulatino desenvolvimento de uma consciência Humana que chegamos à percepção e conseqüente capacidade de produção da Arte, e de todos os admiráveis mundos novos que ela nos faz capazes de realizar.
Continua