“OS ESCOMBROS DO RISO”: a arte opõe fé e razão no filme “O Nome da Rosa”
INTRODUÇÃO
No final do ano de 1327, um mosteiro beneditino construído nas profundezas das montanhas na Itália e “cujo nome parece, agora, decente e prudente omitir” revive o período da História denominado Idade Média ou Idade das Trevas (476 – 1453). O adjetivo “trevas” lhe é concedido não porque tenha sido uma época de tribulações demoníacas ou aterrorizantes episódios marcados por forças oriundas de entidades infernais. Este período é assim denominado devido à produção artística e intelectual que se desenvolveu no cenário medieval. As mudanças artísticas ocorreram de forma bastante lenta. É claro, sempre sob a inspeção da Igreja. A maioria das obras de arte que eram produzidas, na verdade, eram encomendas feitas pela instituição religiosa. No mais, era obrigatório ilustrar temáticas religiosas, cujo fim servia ao caráter didático: as obras eram utilizadas para auxiliar no ensino e propagação dos preceitos divinos. Assim, a arte medieval permaneceu presa ao dogmatismo da Igreja.
Fora das artes, a Igreja influenciou de forma decisiva a mentalidade medieval. A “Grande Senhora Feudal”, como era conhecida, detinha um poder equiparável ao dos senhores feudais. Além de dominante do poder espiritual, a Igreja Católica também participava ativamente da construção do pensamento do homem medieval. Como quase todos os homens cultos da Europa eram padres, todo o conhecimento e a produção do saber estavam em suas mãos. O povo, pobre e analfabeto, era excluído desta partilha entre o clero, tornando-se facilmente manipulado. Desta forma, o homem foi induzido a crer que Deus era o centro de tudo (teocentrismo) e que a salvação de seus pecados era atingida pelo arrependimento de seus pecados e obediência às ordens e às autoridades eclesiásticas. É claramente notável que, assim, a Igreja exercia manipulação ideológica sobre a população e se conservava inquestionável de sua conduta.
É neste clima de dominação religiosa e medievalismo europeu que se constitui a obra cinematográfica “O Nome da Rosa”, de Jean Jacques Annaud. Baseado na obra literária, de mesmo título, de Umberto Eco, o filme não deixa a desejar na fidedignidade aos elementos literários. A trama fílmica reproduz com seriedade o enredo, que incluindo mistério, mortes ocultas e brilhantes jogos de raciocínio e diálogos, dá mais credibilidade ao filme e incentiva o público leitor a conhecer de perto as entrelinhas dessa fantástica literatura de caráter investigativo.
(OS NOMES) DA ROSA
Algo inquietante surge no pensamento ao evocar-se a expressão: O nome da rosa. Seria, esta, uma afirmação ou, na verdade, o filme e a obra literária giram em torno de uma grande pergunta enigmática e não respondida? De certo, a segunda hipótese exerce maior relevância, justificada ao fim do filme, quando Adso, ao narrar a sua partida, lamenta-se por não saber o nome do grande amor, simplesmente a chamava de ROSA. “ADSO: [...] nem mesmo pude saber seu nome”.
Tomando para análise a expressão discutida, percebe-se que, de fato, uma denominação é atribuída à rosa, que permanece escondida atrás do termo “nome”. Este mesmo termo alude a uma identificação, pois dar-se nome às coisas para que possam gozar de uma identidade, que as singularize dos demais seres. O artigo definido “o” fortalece ainda mais esta premissa. Já o símbolo “rosa”, devido à sua grande capacidade de significação, comporta em si vasta possibilidade de sentido.
Na mitologia, as primeiras rosas vermelhas teriam surgido do sangue de Adônis, para o amor de Afrodite; portanto, tornaram-se símbolo do amo. Na simbologia cristã, a rosa vermelha representa o sangue derramado por Jesus na Cruz, que também se tornou um símbolo do amor terreno, uma tradição que continua até hoje.
Um outro sentido é a ligação da rosa ao ser feminino. A rosa pode representar a Virgem Maria, e, portanto, a virgindade, ou a fertilidade e da paixão. É beleza e perfeição, de felicidade e de graça, mas é também a sensualidade e sedução. Parece que esta definição, de a rosa simbolizar a mulher, está mais em harmonia aparente com o filme. Há o contato de um jovem noviço (Adso) com uma camponesa pobre e faminta (de nome não apresentado). O olhar trocado por ambos é suficiente para “desconcertar” o rapaz. A contemplação daquela mulher o faz perder o raciocínio anterior acerca das mortes, que é retomado logo em seguida, quando William o chama a atenção. No curto tempo em que desfrutou da presença da moça, no desenrolar do filme, Adso não cultivou uma oportunidade de perguntar-lhe ser nome. Todavia, assim a denomina – Rosa – porque a compara com uma rosa, doce e delicada. Realmente, a moça chamava-se Rosa. Ora, se o nome já foi proferido do título, qual a razão da pergunta? Conclui-se que, neste caso, a significação de mulher atribuída ao titulo do filme perde força simbólica.
Após algumas tentativas de desvendar o mistério por trás da rosa, a representação provável para o símbolo da rosa é a biblioteca do monastério. De acordo com o filme, a biblioteca guardada por Malaquias e Jorge era proibida de ser visitada. Somente estes, e também o bibliotecário assistente Berengar, tinham acesso à mesma. Qual seria, então, o motivo de o recinto ser vedado aos visitantes? Será que havia algo de misterioso ou proibido lá, que não poderia cair aos olhos de outros? Por acaso, a biblioteca escondia um segredo importantíssimo, a ponto de ser lacrado a sete chaves? Sim! A fonte de toda a preocupação da Igreja, que nem mesmo os monges, que ali trabalhavam, tinham permissão de ver: livros. Não livros comuns. Mas “livros proibidos; espiritualmente perigosos [WILLIAM DE BASKERVILLE]”. No interior da biblioteca, descansavam os exemplares dos livros contidos na lista de publicações proibidas pela Igreja Católica, o Índex.
Um costume medieval era de colocar uma rosa no teto da sala de reuniões, indicando que onde houvesse a flor no teto, os assuntos deveriam ser mantidos em segredo. Logo, a rosa representa o secretismo cristão, ligado a segredos escondidos pela Igreja durante a Idade Média.
Observando a estrutura da rosa, ver-se que o miolo, fechado, significa o símbolo do segredo. Assim, a rosa fechada esconde em seu interior, no miolo, a sua essência – o néctar-, fonte de vida para as abelhas e outros insetos. A flor oculta no mosteiro escondia uma essência vital para o homem: o conhecimento. E esta essência daria ao homem poder sobre si mesmo. A razão. E tendo domínio sobre seu destino, já não precisaria mais submeter-se aos jugos e ordens das entidades religiosas, o que poria os alicerces da Igreja em abalo. O néctar essencial retido pela rosa eram os livros, em especial, o Livro II da Poética de Aristóteles, dedicado à comedia. Provando o gosto doce dessas leituras, os homens saciariam sua sede por esclarecimento, entendimento, e se libertariam das “prisões divinas” da ignorância, perpetuadas pelas organizações ortodoxas.
WILLIAM DE BASKERVILLE: à luz da razão e da ciência
“Eis um homem que conhece o espírito humano e os ardis do demônio” [Abade Abbone sobre o perfil de William]. De feições sérias e pensamento compenetrado, o frade franciscano William de Baskerville adentra o mosteiro a fim de investigar e desvendar os mistérios que rondava várias mortes que ocorreram naquele local. William é um homem perspicaz e se vale desta destreza em seu trabalho investigativo. Ele é a simbologia da razão e do conhecimento científico, características marcantes do Humanismo e Renascimento, fazendo dele um espelho de Descartes, que é o pai do racionalismo. Vivenciou a célebre frase “Penso, logo existo”. É o retrato do homem moderno, receptivo às inovações do pensamento racional.
Quando ele chega ao monastério, traz consigo instrumentos de cunho científico (astrolábio, quadrante, círculo em pé, óculos “olhos de vidro com aros gêmeos”). Os óculos representam o homem que procura enxergar melhor o conhecimento, um buscador da verdade através da razão. No momento em que o abade Abbone adentra em seu quarto, trata logo de cobrir os objetos com um pano. Esta atitude evidencia que a fé cristã não estava preparada para vislumbrar uma nova forma de explicação do universo, pautada do saber racional e, talvez, escandalizar-se-ia com a novidade.
Além de inteligente, William “[...] se fiava em Aristóteles, filósofos gregos e em sua notável inteligência lógica. [ADSO]”. O pensamento filosófico grego é direcionado a sua pessoa, que se apropria de conhecimento aplicando a lógica para efetuar as suas deduções racionais necessárias para a conclusão de sua investigação no mosteiro. Duas falas do filme, ambas ditas por William de Baskerville ao seu aprendiz Adso, mostram toda sua sapiência: “A única prova que vejo do demônio é o desejo de todos em vê-lo atuar”. Esta frase retrata a posição de que o homem prefere criar e manter um erro para manter para si a aparência de que está certo. Em síntese: a arrogância e a hipocrisia são criações humanas e não divinas. “A dúvida é inimiga da fé”. Já esta outra resume a essência da filosofia, pois o propósito do filósofo é o de buscar o saber e não simplesmente crer, por isso a filosofia é a arte do questionar.
Deixando de lado o racionalismo, é notória também a utilização do conhecimento empírico. O empirismo é bem caracterizado na cena em que Willian de Baskerville, juntamente com o monge Severinus de Herbolário, efetuam a necropsia do cadáver do tradutor grego Venâncio de Salvamec e, no dialogo de ambos, ocorrem algumas citações de caráter empírico: “Um talo de ralado de bistorta para tratar diarreia; Quanto à cebola, administrada em pequenas quantidades, quente e úmida, ajuda a prolongar a ereção; O arsênico é um remédio eficaz para distúrbios nervosos se tomado em pequenas doses. Em grandes quantidades ocasiona a morte”.
Além do racionalismo, pensamento filosófico e do empirismo, observa-se, ainda, a existência do conhecimento baseado na mentalidade mágica, que se vale de explicações fantásticas e sem nenhuma fundamentação lógica. O personagem do filme que simboliza esta forma de pensar é o monge franciscano Umbertino de Casale. Quando o monge Ubertino se defronta com o cadáver do tradutor grego Venâncio, anuncia o fim do mundo através das profecias do livro do Apocalipse: “E com a primeira trombeta, veio o granizo. Após o temporal de granizo, com a segunda trombeta, o mar tornou-se sangue. E olhem... há sangue aqui. Com a terceira trombeta, uma estrela cadente cairá em fontes de águas.” O primeiro monge a ser encontrado morto é o monge Adelmo de Otranto. O seu corpo apareceu despedaçado na base da muralha, no meio do granizo e da neve, como se tivesse sido lançado do alto da torre da biblioteca. O segundo monge encontrado é o tradutor grego Venâncio de Salvamec, imerso num grande jarro de sangue suíno. O terceiro monge é o bibliotecário assistente Berengar, que se afogou numa banheira.
Ao longo de todo o filme, prevalece a razão sobre os sentimentos, o estudo científico das situações sobre a forma mais fácil de resolver as questões, ou seja, sobre a forma como os métodos inquisitoriais resolviam os assuntos do dia a dia da sociedade.
Sendo um ex-inquisidor, ele questiona a eficácia do Santo Ofício (devido a um julgamento em que absolvia o réu por ter lido um livro proibido pela Igreja e, ao final, este acabou condenado à fogueira e William preso por recorrer da sentença ao Papa). William é justo e assim não pode ser peça de manipulação no jogo de interesses da Igreja. Busca uma nova maneira de ver os outros para julgar com clareza: a razão.
ADSO VON MELK: entre a razão e o coração humanos
Jovem, bonito, inocente, de feição angelical. E dividido. Assim se manifesta o noviço Adso von Melk, filho do Barão de Melk e protegido do monge franciscano William de Baskerville. O mesmo rapaz, sedento pelo saber, toma a voz de narrador do relato, agora, idoso. Na cena inicial, Adso nos apresenta o mosteiro, onde se desenvolverá a história, bem como os protagonistas desta saga: o mestre e seu aprendiz. “Tendo chegado ao final de minha vida de pecador, meus cabelos agora brancos, preparo-me para deixar aqui meu testemunho dos maravilhosos e dos terríveis eventos que testemunhei na juventude, no final do ano de 1327. Que Deus me conceda sabedoria e graça, para ser um cronista fiel dos acontecimentos ocorridos num remoto mosteiro no obscuro norte da Itália. Um mosteiro cujo nome parece mesmo agora clemente e prudente omitir. (ADSO IDOSO)”. O narrador faz questão de acentuar o detalhe de que os tempos dos fatos são tão tenebrosos quanto o lugar é obscuro: é uma menção à época da Santa Inquisição, e o caráter ostensivo da história, somente por essa razão já se justificaria.
Adso, sendo um monge, teria de se submeter às explicações religiosas das coisas. Mais sua sede por conhecer, alimentada pela sabedoria científica de William, conduziu-o a buscar outras formas de esclarecimento das mortes, pautado em evidências. Assim, Adso metaforiza um aspecto importante do Humanismo: a passagem da mentalidade medieval para uma postura racional. Como o período humanista foi uma passagem, transição entre os valores obscuros da Idade Média para uma visão mais ampla e racionalista de mundo, assim também é Adso, um atento monge que em tudo questiona seu mestre. Isto fica bem evidente no decorrer de todo o filme. Adso está sempre na companhia de seu mestre, acompanhando passo a passo as investigações, pinceladas com grandes doses de racionalismo. Na medida em que é questionado por William, ele procurar pensar em razões lógicas para os indícios e foge das explicações preestabelecidas pela Igreja.
Uma cena interessante é a em que Adso pergunta a seu mestre se ele o estava testando. Disse isso porque achava que as perguntas feitas por seu mestre já possuíam suas respostas, conhecidas por William. É bem emblemático porque, sendo William a imagem da razão, Adso deveria passar por aquele “teste”, teria de transitar do obscurantismo do pensamento medieval para a luz do entendimento.
Verifica-se, também, que Adso expressa um sentimento por determinada personagem do filme: a camponesa. “Quem era ela? Quem era essa criatura que, rosa como a aurora, era fascinante como a lua, radiante como o sol, terrível como um exército pronto para lutar.” Este sentimento, despertado no primeiro encontro que tiveram ao pé do mosteiro, fez-lo ter uma outra visão das pessoas, diferente da apregoada dela Instituição Católica. Ele enxergou o “humano” naquela moça, o centro de sua atenção. Portanto, temos a doutrina do Antropocentrismo, que considera o homem como centro ou medida do universo. A sua preocupação em ajudá-la é forte indício de que ele passa a enxergar o outro como um ser necessitado de amparo, que tem o direito de ser feliz, e não como um desgarrado pecaminoso, que carrega o fardo de seus erros, tão difundido na época. “Só quero que ela seja feliz, quero tirá-la da pobreza. (Adso)”. Este anseio em protegê-la vai além da questão social e humana. Penetra as instâncias do sentimento amoroso. Adso experimentara a primeira sensação de se estar amando alguém. “Não o amor a Deus, mas a uma mulher.”(Adso). O segundo encontro, no celeiro, é o ápice desta constatação. Ali, Adso quebra seus votos de castidade e mantém uma relação sexual com a jovem. Mas do que um contato físico e desejo carnal, ter aquela mulher unida ao seu corpo fez Adso perceber que também é humano, de carne, movido por vontades e impulsos intrínsecos. Desta forma, ele tinha tudo para viver ao lado dela.
Porém, era um monge e a sua “razão” falou mais alto. No final do filme, ele se vê tendo que tomar uma escolha: seguir seu mestre e estudar filosofia, ou levar a aldeã consigo e viver outra vida, que certamente o deixaria a largar o monastério. E ele escolhe a primeira opção. Ensaia uma dúvida, ao retornar o olhar à moça, já estando a caminho do mestre. Mas desiste e segue a diante. Não raro, esta cena ilustra a famosa frase: “O coração tem razões que a própria razão desconhece.” (Blaise Pascal)
SALVATORE: a heresia e o grotesco de forma exagerada
O irmão Salvatore, um corcunda com aparência de débil mental e passado herético, vivia no monastério sob a custódia do irmão Remígio de Varagine. Ambos, porém, escondiam o mesmo passado de heresias das autoridades eclesiásticas, com medo da terrível fogueira da Inquisição. É importante observar que é por meio de Salvatore que o enigma da trama começa efetivamente a se desenrolar.
Ele é a chave para o desvendar dos mistérios circundantes às mortes no monastério. Contudo, sua aparência grotesca, gestos bruscos e atitudes “anormais”, apartam-no do convívio com os outros monges, refugiando-se num santuário com várias carrancas e imagens demoníacas. A própria aparência de Salvatore, feia e repugnante, remete às feições de um demônio.
Num primeiro momento, a pessoa do Salvatore remete às práticas hereges. Os hereges eram as pessoas que iam contra os dogmas da Igreja. Discordavam das ordens religiosas. Salvatore fazia parte de um grupo de hereges, conhecidos como Dolcinites. Eles acreditavam na pobreza de Cristo, mas diziam que todos deveriam ser pobres; por isso, matavam os ricos. William, com seu aguçado conhecimento, logo o identificou como pertencente à ordem herética, ao ouvir de Salvatore o grito característico desse grupo de discordantes: “Penitenziagite”.
Em segunda meditação, atribui-se à figura de Salvatore a simbolização do ridículo, resultante sa observação de seu comportamento e aparência. A cena em que Salvatore encontra Adso em seu esconderijo é impar, quando aquele o assusta com sua imagem e, ainda por cima, faz-lhe caretas e lhe mostra a língua.
Por fim, uma última atribuição ao personagem Salvatore é o símbolo dos vícios e do pecado. Salvatore facilitada a entrada da moça camponesa no mosteiro para oferecer agrados sexuais a monges corruptos, como o irmão Remígio de Varagine, em troca de alimentos. Salvatore vivia sempre escondido, que simboliza o encortinar dos defeitos e falhas morais da Igreja. Queriam por em segredo as violações aos preceitos divinos, pondo embaixo da batina, assim como colocaram Salvatore distante do monastério, numa espécie de gruta que mais parecia um altar de veneração a entidades das trevas.
Ainda se pode atribuir uma característica de cômico à imagem do Salvatore. A extrapolação de suas feições (áreas capilares ausentes, nariz avantajado, escassez de dentes, corcunda), naturalmente, provoca certo ar de riso. Combinados com a atuação fiel de um monge desengonçado, a força cômica do personagem remete à Teoria da Comédia, do Livro II da Poética de Aristóteles. Esta ideia assemelha-se ao lema trabalhado por Gil Vicente, no teatro humanista: “Ridendo castigat mores” (rindo, corrigem-se os costumes).
O uso do exagero dos defeitos, do feio, dos vícios pelas personagens do filme, permite identificar aspectos da Escola Literária Barroco. Os sete pecados capitais aparecem de forma exagerada: a gula (as pessoas do povo que correm, desesperadas, vasculhando os restos de comida lançados do alto do mosteiro, o colocando o que encontravam na boca); a avareza (A Igreja que, temendo perder o bem mais precioso – o poder -, impede o acesso aos livros da biblioteca, além de questionar a ideia de que deveria desfazer-se de toda a sua riqueza material, como fez o Cristo); a inveja, a ira (a população que se rebela ao ver uma pessoa de sua gente prestes a ser queimada sem justa causa). a luxúria (os atos pecaminosos de cunho sexual e homossexual por parte dos monges); o orgulho (a confissão do irmão Remígio de Varagine sobre sua participação no movimento herege: “Não nego! Sinto orgulho disso! Nos doze anos que aqui vivi eu apenas enchi a barriga, busquei prazer e abracei famintas camponesas por ninharia. Mas agora deu-me forças para lembrar-me daquilo em que acreditava de todo coração. E agradeço por isso”) e até a preguiça (a vida contemplativa e também sustentada dos monges).
Como outra característica barroca observada está o feísmo, a exploração da miséria da condição humana, referida por aspectos cruéis, dolorosos e muitas vezes repugnantes. A situação deplorável em que se encontra a moça e as pessoas do povo é visível: vivem em moradias precárias, na imundície, mau cheiro, sem comida. A crueldade e o sofrimento são retratados nas seções de torturas investidas pelo inquisidor Bernardo Gui ao corcunda herege Salvatore.
O SER FEMININO: pecado diabólico em corpo de mulher
A representação da mulher, transcorrida nas cenas do filme, é exposta a uma vida miserável, em que até mesmo Adso tem pena e pensa em tirá-la da pobreza. Vivia à mercê da Igreja que, por vezes, doava restos alimentares à sua população. A sua figura era rústica, mas por de trás de tudo isso, era uma bela mulher. Mas, para a Igreja, era tida como a fonte de pecado. O clero medieval acusava a mulher de ser vulnerável à tentação do Satanás e, muitas vezes, citava exemplos de Eva, mulher pecadora, tentadora e, aliada ao Diabo, induziu Adão a comer do fruto do pecado, provar da luxúria, da gula, da sexualidade.
E ainda, podem-se observar no filme três classificações dada à mulher: prostituta, santa, ou bruxa. A prostituta era aquela que cedia seu corpo ao jogo dos prazeres, os vícios da carne, para saciar os desejos ou para ganhar a vida de forma fácil. A santa remete a seguir os exemplos da Santa Virgem Maria um molde de virtudes dóceis, puras e devotas aos seus maridos. A bruxa era aquele que buscava conhecimentos contraditórios da igreja, que estava sempre em busca de conhecimento tidos como hereges mediante a Inquisição. Era assim que a figura feminina foi representada no decorrer do século XIII, alguns pensadores da época também deixavam suas opiniões sobre o ser oposto: Tertuliano dizia que “a mulher era a porta do Demônio”.
O filme revela toda essa imagem de magnitude demoníaca dada a mulher citada nas cenas, quando no celeiro o irmão Remigio, ao procurar a moça por entre as palhas, atribui-lhe o nome de “Endemoníada”: “Saia, saia, pequena endemoniada. Sei que está aí! sinto o seu cheiro[...]”. Ele queria trocar alimentos em favores de prazeres carnais. Se não fora ainda alheio mencioná-la tal como objeto de prazer, se bem que a mulher é tida como uma reprodutora, uma procriadora, dos demais seres da mesma espécie. Assim, o filme preocupa-se em transmitir a imagem da mulher como sendo um animal selvagem pelo fato da mesma soltar grunhidos. Ressalta-se que, não participando de diversas cenas e sendo o único personagem feminino da trama, a implícita certa desvalorização da mulher.
Outra cena também de relevante interesse para sustentação da tese de que a mulher possuía ligação com o demônio, é quando William e Adso entram em uma sala destinada a orações e encontram Umbertino de Casale deitado frontalmente no chão, que logo após levanta-se e alerta os dois sobre o perigo que ronda o mosteiro: “Não soube que o demônio está jogando belos jovens pelas janelas? Havia alguma coisa de feminino.. alguma coisa de diabólico no jovem que morreu. Ele tinha os olhos de uma moça buscando uma relação com o demônio.”
A associação que se faz da figura da mulher à figura do diabo é evidente. O discurso da Igreja medieval não põe panos quentes nessa questão e nem faz dela uma alegoria, isto é, quando trata da posição da mulher na sociedade, é bem explícita: “Ela é linda, não é? Quando uma fêmea, por natureza tão perversa, torna-se sublime por santidade, então ela pode ser o nobre veículo da graça. Bonitos são os seios, que alimentam um só bebê” (UMBERTINO DE CASALE).
O próprio William adverte Adso, por meio de passagens bíblicas, sobre o perigo que carrega este ser tão rechaçado pelas autoridades religiosas. Mas, admite que sem ela, a vida estaria condenada à inércia do progresso. “Em Provérbios diz: ‘A mulher se apodera da alma do homem’. Em Eclesiastes diz: ‘Mais amarga que a morte é a mulher’. A vida seria mais tranqüila sem o amor, Adso. Segura... Sossegada... E monótona.”
O RISO: ruínas em forma de comédia
A chave para elucidar as mortes misteriosas no mosteiro tem ligação direta com uma manifestação tipicamente humana: o riso. O suposto segundo volume da obra de Aristóteles pregava a natureza boa e cognitiva do riso, fato que era inaceitável para a igreja na Idade Média que ligava o riso ao diabo, e a obra sobre a comédia dizia ser o riso e a sátira remédios milagrosos e que a representação exagerada dos defeitos, vícios e fraquezas purificava as paixões, como acontece num processo de catarse.
Porém a Igreja temia que o riso fizesse o povo deixar de temer o diabo e além da questão ideológica ser ferida também seria diminuído o poder da igreja, pois esta era a “única” defensora dos mortais pecadores diante das artimanhas do demônio e da fúria implacável de Deus. No momento do jantar monges, um deles ler, em tom declamatório e meio profético, restrições dirigidas aos mesmos, proibido veementemente o riso: “Um monge deve manter silencio. Ele não deve falar o que pensa, até que seja questionado. Um monge não deve rir. Para isso existe o bobo que levanta a voz em risos.” Jorge de Burgos, o velho bibliotecário cego, ao ter ciência de rumores de risadas dentro do mosteiro, quando o monge Berengar sobe num banco, aos gritos, com medo de um rato, quebra um vaso e reprime os mesmos: “Um monge não deve rir! Só os tolos riem à toa! O riso é um evento demoníaco que deforma as linhas do rosto e faz os homens parecerem macacos.” William, porém, retruca o pensamento: “Os macacos não riem. O riso é próprio do homem.”
Por que motivo o riso causava tanto alvoroço e temor, a ponto de não ser manifestado? A resposta residia, justamente, na Obra Poética II, de Aristóteles, que tratava da comédia. Para Jorge, a comédia poderia fazer com que as pessoas perdessem o temor a Deus e, portanto, fizesse desmoronar todo esse mundo cristão.
Por convenção, o riso é sinal de felicidade, que traz algo de bom. Contudo, este mesmo riso foi a causa de toda a destruição que ocorrera no monastério. Todos que morreram, experimentaram alguns momentos de alegria, expressa por riso. Neste caso, o caminho para o conhecimento passava pelo riso da morte. Para Jorge, o riso aniquilava o medo e "sem medo não pode haver fé. Sem o medo do Diabo, não há necessidade de Deus. Que aconteceria se devido a este livro, os eruditos declarassem ser permitido rir de tudo? [...] O mundo regressaria ao caos, por isso selo aqui no túmulo em que me transformo".
A IGREJA CATÓLICA: as duas faces da mesma máscara
No filme, a Igreja, com o objetivo de manter uma fé cega e obediente, monopolizava os seus dogmas como verdades absolutas, limitando o acesso ao conhecimento, inclusive entre os clérigos, de modo que ela não pudesse ser questionada.
Com o intuito de evitar a busca pelo conhecimento e possíveis questionamentos que aquele pudesse gerar, a igreja adotava preceitos, tais como: “A dúvida é inimiga da fé.”, “Na sabedoria, há tristeza; quem amplia seu conhecimento, amplia também o seu pesar.”, “É perigoso raciocinar demais.”. Estes e outros preceitos confirmavam a crença, do alto clero, em que os livros possuíam sabedorias diferentes das deles e que eles poderiam pôr em risco a infalibilidade da palavra de Deus.
O mosteiro Beneditino era possuidor de uma rica biblioteca, porém seu acervo era bastante restrito e protegido por um labirinto construído em seu interior. Nesta biblioteca havia muitos livros que eram “proibidos” e entre eles estava o segundo livro da Poética de Aristóteles, que fala sobre a comédia. E este, seria a causa de assassinatos dentro do mosteiro. Esse livro, dedicado à comédia, era especialmente proibido, pois o riso era considerado um pecado, coisa do demônio, portanto, os monges não deviam rir, para o riso havia os bobos. Até que, o monge franciscano, William de Baskerville, descobrisse a verdadeira causa das mortes no mosteiro, elas eram atribuídas ao demônio, a forças do mal que estariam rondando aquele lugar.
O objetivo dos assassinatos, através do envenenamento das páginas do livro de Aristóteles, era deter aqueles que buscassem prazer e conhecimento com aquela leitura e, assim, todos aqueles que o lesse ou tentassem fazê-lo, logo morreriam. A morte era a única maneira de impedir aqueles que insistiam na busca do conhecimento. Desta forma, a igreja mantinha sua posição, evitando possíveis questionamentos e, principalmente, as mudanças.
O monge Jorge de Burgos é a simbolização da fé medieval, que permanece cega ao desenvolvimento racional que aflorava na época. Já Bernardo Gui, o Inquisitor, instaura o Tribunal no Santo Oficio no mosteiro, e a partir daí, começa a investigar as mortes inexplicáveis. De imediato, chega a uma conclusão, para o agrado e conveniência da maioria: as mortes são conseqüências diretas da ação do demônio influenciando os monges com passado nefasto. Diferentemente a imagem de justiça divina que o mesmo ostenta, ele ilustra exatamente o contrário: um ser obscuro, que em nome de Deus e de julgamentos controversos, condena à fogueiras pessoas que poderiam ser inocentes. De homem “santo”, ele mesmo passa a ser influenciado pelo demônio.
Simbolicamente, o autor situa o cemitério da Abadia entre a igreja e a biblioteca. Entre a religião e o saber, estava a morte. Existiam dois caminhos que efetuavam a ligação entre a igreja e a biblioteca, entre a religião e o saber. O primeiro, que era visível, passava por entre os túmulos. O segundo, um caminho subterrâneo, secreto, passava por entre os mortos. O enigma da morte permitia entrar no labirinto, fornecia a chave de acesso, mas não a do seu segredo tão bem guardado. E os monges eram dominados pela biblioteca, pelas suas promessas (o céu) e por suas proibições (os mandamentos).
O retrato dos vícios clericais também é mostrado de forma clara e repugnante: a venda de indulgências (perdão dos pecados), na cena em que alguns monges recolhem doações dos camponeses e lhes prometem recompensas celestes: “Por tudo aquilo que deste na Terra, receba em cem vezes mais no Céu.” As práticas sexuais e homossexuais dos monges, na cena do monge Remigio, à procura da camponesa no celeiro para manterem relações sexuais, e na cena em que aparece o irmão Berengar, lançando olhares fixos os outros monges (Adso e Venâncio). Numa terceira cena, William, ao descobrir o mistério das mortes, afirma em seu raciocínio “[...] Todos aqui sabiam da paixão do assistente por belos rapazes. Quando o belo Adelmo quis ler um livro proibido, Berengar ofereceu-lhe a chave de seu paradeiro contida naquele pergaminho, em troca de carícias antinaturais. Adelmo se submeteu a luxúria de Berengar. [...]”.
CONCLUSÃO
Mediante a todas as cenas e analogias, e ainda um árduo processo de análise pode-se concluir que a Igreja medieval, no decorrer da histórica fílmica, manteve uma posição dual, pois ela dizia-se representante de Deus na terra, o que contradiz os seus atos maléficos. Pois, para alguns Deus é aquela figura misericordiosa, enquanto que a igreja para muitos era temível. A inquisição era o símbolo de medo, pavor, pois torturava em busca de uma verdade que pudesse ter características demoníacas, e não comprobatória cientificamente pelos meios de evidências.