"Watchmen"

Mais do que simplesmente ter ido ao cinema ver “Watchmen”, a experiência muito pessoal que tive no sábado passado começou há uns quinze anos quando li a banda desenhada pela primeira vez numa edição da Abril brasileira. Conhecia o argumentista co-criador da BD através do seu trabalho com o Swamp Thing. Ninguém escrevia banda desenhada como Alan Moore e mesmo sendo apenas as figuras trágicas de Alec Holland e Abigail Arcane o meu contacto com o seu trabalho (e umas histórias esporádicas dele com o Batman e o Super-Homem), na minha cabecinha de fanboy tornara-se desde logo óbvio que o senhor era um caso à parte nos argumentistas de comics. Mesmo assim, caía no erro de o ver como argumentista. Moore não era argumentista. Era um escritor que, por uma incrível sorte dos fãs de bd (nem sempre agradecidos), escolhera o nosso meio preferido para explanar o seu talento superior.

Demasiadas pessoas são consideradas “geniais” para que o adjectivo retenha ainda o seu valor intrínseco. Alan Moore é dos que o merecem. Não se pode melhorar uma obra-prima de Alan Moore. A Física proíbe-o. É capaz até de ser de lei. O melhor que se pode esperar é que a respeitem e preservem quando chegar a inevitável altura de a adaptar ao cinema. Até agora, Moore tem tido azar com as adaptações do seu trabalho. Até agora, as coisas que vão aparecendo sem o seu aval têm sido, para ser meiguinho, risíveis e infelizes. Até agora.

“Watchmen” é o Santo Graal da banda desenhada. Escrito por Moore e maravilhosamente ilustrada por Dave Gibbons, esta novela gráfica criou-se para mostrar a todos os descrentes, tanto de fora como de dentro, aquilo que o meio criativo da banda desenhada podia ser capaz de conseguir. É uma carta de amor ao classicismo da banda desenhada de super-heróis, a esse género tão tipicamente americano, aqui levado a sério e respeitado pelo que é. “Watchmen” tornou os super-heróis credíveis, mas também os obrigou a crescer. Colocou a fasquia lá em cima para os senhores (criadores) que se seguissem e eu tenho a esperança que este filme faça o mesmo para o que já se chama de super-hero movie.

Com “Watchmen”, Moore furou o bloqueio a que os comics estavam votados pelos críticos literários dos chamados “livros a sério”. Quando a mini-série de luxo (um formato pouco utilizado nos comics até então) saiu nos EUA na década de oitenta, Moore foi levado em ombros numa digressão pela América, apareceu em talk-shows, levou um banho de reconhecimento artístico tal que jurou para nunca mais. Infelizmente, acabou vítima do seu sucesso estrondoso criando praticamente sozinho o mercado do comic-book paperback que hoje é a bóia de salvação da indústria de BD americana.

Mas o que é “Watchmen”? É ostensivamente um produto da Guerra Fria. O mundo de “Watchmen” é como o nosso foi em 1985, com as excepções dos Estados Unidos terem emergido vitoriosos do Vietname, Nixon ter sido eleito para um terceiro mandato e os super-heróis serem reais. Aliás, a premissa era mesmo essa. Como seria se os super-heróis existissem realmente? “Watchmen” responde a essa pergunta na forma de uma tese complexa e estudada ao mais ínfimo detalhe psicológico. Qual seriam, por exemplo, os efeitos na politica mundial da existência de um super-homem, ainda por cima ao serviço dos americanos? Que alternativa restaria ao russos senão o armazenar de ogivas nucleares na esperança que os super-homens americanos não fossem capazes anular todas elas quando a altura de premir os botões vermelhos chegasse? E, numa dimensão mais anónima, o que aconteceria à nossa auto-estima se super-homens caminhassem entre nós, simples mortais? O que acontece quando o homem mais poderoso do mundo, o Presidente dos Estados Unidos, não passa disso mesmo, de um homem? E ainda outra, o que dizer da dicotomia responsabilidade vs oportunidade com a qual se debatiam os super-heróis elevados aos estatuto de estrelas de cinema pelo mundo ocidental? O que dizer da sua moralidade?

Nesta realidade alternativa, os super-heróis já existem desde a década de quarenta. Combatem pequenos criminosos ou, quanto muito, o crime organizado. Não tem super-poderes, muitos nem têm juízo ou estilo. Vestem-se em capas e calções ou fatos de sereia, são principalmente distracção de massas (como a BD sempre foi vista na América, ao contrário da respeitabilidade que a arte sempre teve na Europa). Estes vigilantes mascarados colaboram com a polícia, vendem tablóides, são ícones pop como Ziggy Stardust ou os Village People. Praticamente inofensivos. A vida real acabará por os apanhar quando passarem os seus quinze minutos de fama. Alguns morrem em acção, mais coração que cabeça, outros é a vida glamorosa que os vitimiza, e há aqueles cuja loucura inerente os leva de vencidos. Poucos são os que sobrevivem ao evoluir das mentalidades, transformam-se de queridinhos e queridinhas do zé-povinho em palhaços fantasiados, figuras trágicas cuja utilidade política é reduzida.

Há uma excepção potencialmente perigosa neste grupo de super-heróis. Jon Osterman era um cientista que sofreu um acidente durante uma experiência (uma tradição nos super-heróis, que Alan Moore honra e explora como ninguém no livro dando-lhe profundidade temática e pessoal). Jon fora criado rodeado de relógios. O pai era relojoeiro e ensinou-o a montar e desmontar as mais intricadas peças. Quando é atomizado nesse acidente científico, anos mais tarde, Jon consegue reconstituir-se, regressando à vida como o único verdadeiro super-ser à superfície da Terra. Um homem azul com controlo total sobre a matéria, o tempo e o espaço. Nascera o super-homem. Nascera o Dr. Manhattan.

Com o correr dos anos, Manhattan continua a evoluir para algo muito diferente do simples ser humano ou do simples vigilante mascarado. Ao mesmo tempo que a emoção começa a ser substituída pela mais frígida lógica, o homem azul vai desligando os sentimentos em benefício da profunda observação das coisas. Quando na década de setenta as coisas começam a correr mal para os americanos no Vietname, Nixon pede-lhe que intervenha em nome da nação. O que ele faz, mas sem grande investimento pessoal. O Vietname cai para o lado da América, os russos ficam nervosos e a escalada nuclear intensifica-se.

Em casa, os políticos americanos apercebem-se do erro. Apesar do Dr. Manhattan, por ora, parecer domesticável, a Casa Branca acaba por proibir todas as acções de vigilantismo. Uma lei que criminaliza os heróis mascarados é passada no Congresso e todos eles se reformam compulsivamente. Ou nem todos. Alguns passam à alçada do governo, como Manhattan e o ultra-patriótico Comediante. Um outro prossegue as suas actividades de combate ao crime na clandestinidade. O seu nome é Rorschach. A maioria pendura as capas e as botas e faz-se à vidinha do nine-to-five tão bem quanto pode, como são os casos do Coruja Nocturna, da Espectro de Seda e do Ozymandias. É neste estado de coisas que a história de “Watchmen” verdadeiramente começa. Os EUA e a URSS balançam à beira do precipício nuclear e quando o Comediante é morto, Rorschach parece o único interessado em investigar o que na sua cabeça a preto e branco só pode ser uma conspiração para matar todos os antigos mascarados.

“Watchmen”, a banda desenhada, começa por ser uma história de detectives cujas implicações se estendem a todos os géneros pulp. Desenvolve-se e avança através de batidas de enredo que são alimentadas pela complexidade das suas personagens e das origens destas. “Watchmen”, o filme, é bastante fiel ao original. Mas porque a exposição psicanalítica de todo o elenco é um luxo que o estúdio simplesmente não podia suportar, o enredo acaba por deixar à mostra algumas das suas fraquezas. De qualquer forma, comparando este filme a qualquer outro blockbuster dos últimos vinte anos, “Watchmen” satisfaz muito mais.

Estou a adiantar-me. Já contei o suficiente da história para que todo este texto possa soar a spoiler. O enquadramento pareceu-me necessário, mas sendo um dos meus livros preferidos há tanto tempo e visto que nutro pela obra um afecto completamente geek, admito que possa já ter falado demais. Ainda mal falei do filme, por isso…

Alan Moore sempre disse que “Watchmen” nunca foi feito para eventualmente ir parar ao grande ecrã. Era uma banda desenhada, pensada para ser uma banda desenhada utilizando todas as ferramentas que apenas este formato criativo permite. Truques que são exclusivo da banda desenhada, irreproduzíveis noutra forma de arte. Terry Gilliam, o primeiro a tentar adaptar a obra ao cinema, no início da década de noventa, desistiu dizendo que a mesma era “inadaptável”.

Zack Snyder apenas aceitou o projecto por medo do filme ir parar às mãos de algum realizador menos admirador do livro. Porque os estúdios tinham os direitos e havia que rentabilizá-los, este filme seria feito, a bem ou a mal. Especialmente, como os direitos de “Watchmen” pertencem à Warner Bros, e a DC Comics é sua subsidiária, tratava-se apenas de uma questão de tempo. Ainda para mais, com o sucesso estrepitoso que os filmes de super-heróis têm tido. Como Alan Moore se viu vítima do seu sucesso, também o género sofre agora do mesmo mal. O projecto não poderia ser realizado sem antes se terem lançado filmes de super-heróis “normais”, como o Homem-Aranha, os recentes Batman e Homem de Ferro e os fraquinhos mas muito lucrativos X-Men.

Como a banda desenhada, o filme é uma “desconstrução” do género feita de forma construtiva. “Solve et coagula”, como diria Alan Moore. É um filme bastante negro, difícil, que exige do espectador algo mais do que o custo do bilhete e o cu na cadeira. Requer que estejamos à altura emocional e intelectualmente porque os temas vão muito além do mero “vilão-rapta-namorada-do-herói-e-agora?” e o melhor é que não deixa de ser um filme de super-heróis, da mesma forma que “Watchmen”, com toda a sua qualidade literária nunca se coloca acima dos coloridos heróis em calções. Não é uma recriminação, é antes uma declaração de fé ao género.

Snyder realiza mais uma obra-prima, é a minha opinião. Depois do remake de “Dawn of the Dead” e da adaptação da novela gráfica de Frank Miller “300”, dois projectos baratos que ele transformou em banquetes lucrativos para os estúdios, “Watchmen” é uma aposta muito mais arriscada. A simplicidade dos outros dois filmes nada tem a ver com a psicologia complexa deste. Esteve à altura e fez o possível com o formato comprimido dum filme que é bastante longo, mas não o suficiente para os puristas defensores da novela gráfica original. Também o sou, mas sei ser razoável. É a melhor adaptação possível dum meio para o outro, tão parecidos que são nas suas diferenças.

O filme, contudo, denota o esticar além do limite do seu mísero orçamento de 150 milhões de dólares. Nem todos os efeitos especiais passam no teste e as primeiras cenas com o Dr. Manhattan sofrem visivelmente. A tecnologia para fazer na perfeição um homem azul ou fazer uma pequena nave oval voar fluidamente já existe, mas talvez ficasse mais barato fazer este filme daqui a dez anos. Agora que já o vi, não sei se seria capaz de esperar tanto tempo.

É preciso dizer que o filme quase sempre tem bom aspecto. O visual à anos oitenta poderá alienar alguns espectadores mais jovens da mesma forma que os filmes dos anos setenta me alienavam quinze, vinte anos atrás. É preciso crescermos um pouco mais para apreciarmos a passagem do tempo. Mas a partir do momento em que nos habituamos ao azulado do Dr. Manhattan e à máscara movediça de Rorschach, estamos prontos para o mundo sombrio do filme. Na verdade, já estávamos muito antes de vermos o rabiosque gigante.

Porque é impossível ficarmos indiferentes à forma brilhante encontrada por Snyder para apresentar o mundo onde a história se desenrola, a sequência com os créditos iniciais que segue o prólogo onde o Comediante encontra a morte. Ao som de “the times they are a-changing” de Bob Dylan, é-nos oferecido a história dos vigilantes mascarados desde a sua concepção nos anos quarenta, a sua marca no passar dos tempos e marca que o mesmo passar dos tempos vai deixando neles. Vemos também o evoluir geopolítico daquele mundo e a forma como alguns dos supers, como o Comediante e o Dr. Manhattan, fazem o seu papel para o mundo avançar para o precipício que nos espera assim que o nome do Zack Snyder aparecer e desaparece como realizador e o filme (continua) começa.

A quantidade de detalhes por frame é assustadora, e as coisas, mesmo para um filme de mais de duas horas e meia, acontecem bastante depressa. Ajuda se tivermos lido a obra original, mas o oposto é capaz de também ser verdade. Contudo, há pormenores que faltam no filme e que quem leu a banda desenhada preenche naturalmente de cabeça. Quem não leu, pode ter a sensação de que algo lhe escapou em diversas ocasiões.

As cenas de acção são necessárias na versão cinematográfica e, sinceramente, são quase sempre de grande espectáculo. Na novela gráfica, a acção era muito mais reservada. Porém, tanto numa versão como noutra, o aspecto coreográfico é brilhantemente executado. Snyder volta a usar o speed-up em conjunção com a câmera lenta, como fez em “300”, embora aqui não o faça tanto, mas o resultado funciona. O acelerar ou desacelerar da imagem nas cenas de acção ajuda a focar os pormenores das mesmas, enfatizar um momento de violência tal como se faria numa banda desenhada. É um truque que Snyder desenvolveu para adaptar “300” e ser fiel ao veículo que é a nona arte. Visualmente, agrada-me imenso.

Se Alan Moore é o escritor da banda desenhada e merecedor do reconhecimento pela obra, Dave Gibbons é o ilustrador e igualmente merecedor. Como se diz na bd, o ilustrador é o realizador, director de fotografia, cenografista e todo o elenco. A novela gráfica não resistiria nas mãos dum ilustrador que fosse menos que extraordinário (e Alan Moore já se viu emparelhado com alguns tarefeiros sem talento ao longo da sua carreira). Dave Gibbons desenhou ao longo de quase dois anos os guiões incrivelmente detalhados de Moore, quase sempre em pranchas de nove painéis repletas de coreografias emaranhadas. Snyder não iria a lado nenhum sem os seus actores.

Os actores. Nenhum deles é um nome grande. Alguns têm indy cred para dar e vender, mas nunca deram milhões a ganhar aos estúdios. Resumindo, são baratinhos mais bons. Quase todos.

Jeffrey Dean Morgan é Edward Blake, o Comediante. Este actor de TV tornado famoso em “Anatomia de Grey” (tive de o ir pesquisar) exala na perfeição a selvajaria niilista da personagem que, apesar de morrer logo nos primeiros cinco minutos do filme, premeia toda a história com cirúrgicas aparições em flashback. A história do mundo de “Watchmen” tem dedo de Blake. Se aconteceu, ele esteve lá e, muito provavelmente, aconteceu porque ele estava lá. Coração de aço e tomates de chumbo, o Comediante é um papelão.

Patrick Wilson é Dan Dreiberg, o Coruja Nocturno. Wilson é actor de composição, um nome em ascensão que já trabalhou com Kate Winslet em “Pecados Íntimos”. Os papéis que tem desempenhado são quase sempre de personagens oprimidas sob uma sensação de fracasso, de nunca estarem à altura de alguma coisa ou de esconderem falhas irreparáveis. A sua performance foi das mais bem conseguidas porque, não sendo o papel mais memorável do filme, será o mais humano de todos. Dreiberg sente-se metade do que era quando se vestia de Coruja Nocturna e combatia o crime ao lado de Rorschach. O companheiro continuou lutando, apesar das ordens do Congresso, mas ele não foi capaz. Guardou essa vida na cave, onde perde muito tempo a sonhar com o passado.

Billy Crudup é Jon Osterman por breves minutos, e o Dr. Manhattan durante quase todo o filme. Se virem o filme irão reconhecê-lo facilmente, porque é o que tem um pénis azul. “Quase Famosos” foi o maior sucesso na sua carreira. O papel em “Watchmen” é muito mais complicado por ficar um pouco à mercê do departamento de CGI. O trabalho digital de pós-produção não o favorece, mas mesmo assim o desempenho é um notável registo de subtilezas de tom e expressão. É o ser mais poderoso do planeta, quem sabe do universo, não admira que seja melancólico e um tudo-nada deprimente. Manhattan tem algumas das melhoras deixas da banda desenhada (e do filme).

Matthew Goode talvez não tenha sido a melhor escolha para desempenhar o papel de Adrian Veidt, o homem mais inteligente do mundo também conhecido por Ozymandias. O actor faz lembrar um qualquer membro duma boysband e nem sempre transmite a confiança pós-arrogante do Adrian original. Mas talvez seja só embirração minha. A sua personagem é mais low key que as outras e do grupo será a que menos tempo de antena tem ao longo do filme. Apesar de ser humano, ao contrário de Manhattan que se mudou dessa pele há muito, Adrian consegue ter menos empatia com os antigos companheiros. Mas é rico, dá-se desconto. Transformou a sua vida passada num negócio e fez fortuna.

Malin Akerman é linda, mas talvez o papel de Laurie Jupiter, a Espectro de Seda II, pedisse uma actriz mais completa. Akerman não consegue emprestar grande coisa a Laurie, que é uma personagem complicada. Se por um lado, as melhores deixas vão todas para os colegas masculinos, ela é quem fica melhor na fotografia. E nas sequências de acção, porque sabe castigar aqueles duplos sem nunca perder o bom ar. Porém, o facto de ser incrivelmente sensual na sua máscara não chega para os trechos exigentes. As cenas em Marte por vezes dão a sensação de que Billy Crudup está a falar sozinho, tal é a diferença de capacidade interpretativa entre os dois.

A pérola é Jackie Earle Haley. O actor que deixou a representação durante treze anos para explorar outras vias artísticas e reentrou em cena com uma performance em “Pecados Íntimos” que lhe valeu uma nomeação ao Oscar. Haley teve de lutar para ficar com o papel de Rorschach, talvez a figura mais emblemática da obra. O seu Rorschach é em cheio, encarnando a personalidade sem filtro do vigilante que responde não às leis dos homens mas à lei do Homem. Tanto com a máscara branca com pintas negras que se movem e modificam constantemente (a que ele chama a sua cara) como com o rosto verdadeiro de amorfo zé-ninguém na pele de Walter Kovacs. Passa boa parte do filme por trás da máscara, a sua verdadeira identidade, e a voz dele marca o tom de todo o filme. Quando tira a máscara, contra-feito, claro, torna-se ainda mais perturbador, mais absolutista e real. Sem máscara, como Kovacs, apercebe-se que o mundo evoluiu para um patamar onde a sua presença talvez não seja consentida. O trabalho do actor fica connosco e mesmo dias depois de visto o filme lembramo-nos das coisas que diz.

Neste filme de elenco, duas personagens óbvias competem pelas luzes da ribalta. Rorschach e Dr. Manhattan representam a dualidade filosófica de “Watchmen” (livro e filme). São Emoção versus Razão, mas ambos tendem as ver as coisas a preto e branco, na base do tudo ou nada. No caso do Dr. Manhattan, isso leva-o a distanciar-se da Humanidade. No caso de Rorschach, a mergulhar de cabeça nela, no seu mais negro e imperdoável.

Mas existe um terceiro factor, quase tão importante quanto estes dois, e esse factor é-nos oferecido pelo Comediante. A sua morte logo na sequência inicial despoleta todo o filme. Se os outros dois são Emoção e Razão, o Comediante é o poder inebriante do Estou-me-a-cagar. Gosta de fazer a guerra, de estar no terreno, chupa um conflito até ao tutano e depois parte como se não fosse nada com ele. Haverá outras guerras. Há sempre. É da natureza humana, para quê importar-se com a contagem de corpos? Enquanto Rorschach se importa patologicamente com cada morte inocente, o Comediante mata inocentes e não se importa.

Os dois representam os inexplicáveis pendores violentos da Humanidade, aquele travo a treva primordial que nos persegue desde o lodo, enquanto Manhattan prefere ser mero espectador. Mas não espectador como são os humanos deste 1985, cagados de medo agora que a guerra os seguiu até casa, total e aniquiladora. Manhattan não tem medo nem se pergunta como irá acabar tudo aquilo. Ele sabe como irá acabar. Ele, Rorschach e o Comediante são os únicos que olham para o mundo de olhos abertos. E todos o vêem de forma diferente.

À parte, mas à mesma parte de tudo isto, Dan e Laurie representam a esperança. A Espectro de Seda II e o Coruja Nocturna são mais jovens e mais bem-parecidos no filme que na novela gráfica, mas as exigências do meio mais dependente de bom visual do cinema explicam isso, e aceita-se. Na banda desenhada, ambos andam pelos seus quarenta anos, não têm corpos bonitos. O bom do filme é que, apesar das boas aparências, as fragilidades das personagens permanecem intactas e expostas. Estas duas andam ao sabor das acções das outras três, orbitando os egos inflados e abrasivos dos companheiros mas providenciando a eterna promessa de que as coisas podem sempre ser feitas de outra maneira. Ou seja, bem feitas.

Também no livro, o Coruja Nocturna e a Espectro de Seda II personificam o super-herói clássico, que faz o bem sem olhar a quem. Ele, alguém que se acha demasiado normal sem a capa e as botas e ela, que só quer ter a fama e o respeito que a sua mãe, a Espectro de Seda original, teve no seu tempo. Adoram a vida de super-herói, e é isso que os atrai. Não é um sentido exagerado de justiça, nem o poder de fazer o que quiserem sem serem chamados à responsabilidade. É a aventura. Pura e simples, sem contemplações filosóficas. Ora o super-herói clássico, quando foi criado nos anos trinta, era isso mesmo. Aventura. Alan Moore (entre outros) vestiu-o de responsabilidade e consequência em “Watchmen”, mas nunca esqueceu isso. Um super-herói faz coisas de super-herói. É um ideal. Pode ou não dar-se bem num cenário realista, mas tudo o resto é uma variação do tema.

Dois pontos sobre o filme que ainda tenho de mencionar. O primeiro é a banda sonora. Deliciosa. Já mencionei o genérico ao som de Bob Dylan, mas a cena de amor entre Dan e Laurie com o “hallellujah” do Leonard Cohen na cabine do Archie está fantástica! E não pude deixar de notar que, na cena em que Adrian traz pela trela uma frente unida dos maiores industriais do mundo, se ouve ao fundo “everybody wants to rule the world” dos Tears for Fears. Não será o hit duma geração, mas casa com a cena como nenhuma outra canção da década de oitenta. Além destas, também temos sequências com Jimmi Hendrix, Nat King Cole, Simon & Garfunkel (esta um dos momentos fortes do filme), por exemplo. Snyder soube utilizar a música como forma de encaixar o espectador com a temporalidade de cada cena e isso foi importante na medida em que a história vive de flashbacks.

Por fim, os números. A bilheteira internacional mostra que o filme não convenceu o público que geralmente acorre a ver os seus bem conhecidos homens-aranha e os dark knights em massa. Não é um sintoma preocupante em relação à qualidade do filme. A bilheteira fraca pode ser a paga de um filme cheio de personagens de que nunca se ouviu falar, correndo para cima de duas horas e meia com classificação “R- restricted” (para maiores de dezoito anos), com sexo, nudez frontal masculina, violência e palavrões de estiva nas bocas de actores que não são estrelas maiores. Não é para crianças, coisa que morcegos e aranhas conseguem (e são feitos para) ser. O filme é bom mas, tal como a bd não era, não é o filme habitual de super-heróis. É super-heróis para adultos, o que parece uma contradição em termos.

O público parece assoberbado pela temática da mesma forma que os críticos em grande parte demonstram a sua tradicional ignorância/arrogância em relação ao género, mas mais em particular, à obra original. Se tem super-heróis, tem de ser juvenil, certo? E se não é, pior ainda, porque então não se encaixa em lado algum. Mais perdem. Sem dúvida seguirá na esteira daqueles filmes que se tornam influentes artisticamente, se bem que mal sucedidos financeiramente. Ninguém poderá dizer que não foi feito com amor e respeito genuínos pela obra original, o que é raro em Hollywood. Por gratidão, verei qualquer coisa que Zack Snyder fizer daqui em diante. É uma obra-prima do cinema para ver e rever, naquela de se apanhar o que se deixou escapar das outras vezes. Nisso, é tal e qual o livro.

Pessoalmente, “Watchmen” sempre foi uma obra de culto e é justo que o filme o seja também. Os estúdios não estão preocupados, pois sabem que quando as diversas edições “director’s cut” e “extended version” em dvd começarem a pingar nas grandes superfícies, o valente ka-ching que se seguirá será audível de Marte.

Nuno Lopes
Enviado por Nuno Lopes em 06/01/2010
Código do texto: T2014064
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