“Inglourious Basterds”
Com “Inglourious Basterds” Quentin Tarantino não faz prisioneiros. Excepto que faz, a bem dizer, de nós, que já o fomos ver, e de vocês que o devem ir ver, todos prisioneiros do seu talento. Hum, talvez seja injusto da minha parte não ter usado o plural quando falei, mesmo agora, do talento de Quentin Tarantino. No plural, talentos. E diz a regra que se para se utilizar o plural basta que o objecto em questão seja mais que um, portanto, dois (ao qual poderia ter chamado “par”, como em “par de talentos”), no caso do realizador de “Reservoir Dogs” ou “Death Proof” (um par de filmes que dificilmente se esquecem), o plural de talento é “inúmeros talentos”, e segue para bingo. Não é assim que se diz na América?
Não, mas não interessa ao caso. Esqueçamos por um momento (ou para sempre) o despropósito do título completo com que o distribuidor português rebaptizou estes “Basterds”, sem dúvida imaginando que tinha em mãos a versão actual do “Doze Indomáveis Patifes”, e falemos do filme que, como diz uma personagem às páginas tantas do guião e que aqui parafraseio, bem pode ser a obra-prima de Tarantino.
É um filme de guerra, mas não é um “Doze Indomáveis Patifes” (lamento, distribuidor nacional com pendores simplistas no que toca a rebaptizar produtos estrangeiros), não é um simples filme de guerra. Os géneros enviam-nos, enquanto espectadores que pagaram o bilhete (coisa que eu fiz embora tivesse na minha posse um myZONcard que me dava outro bilhete de graça, desculpa, amor), dizia eu que os géneros nos enviam sinais trocados quanto ao filme que estamos a ver. É guerra, mas também é um western. É pimba, mas incrivelmente erudito. E as partes que nos fazem relembrar com nostalgia a icónica britcom “Allo, Allo” estão lá de propósito.
Em mais do que um sentido, segundo as más-línguas, mas falando apenas no bom, Tarantino é uma esponja. Do latim, “spongia tarantino est”, que quer dizer que o rapazinho vê de tudo. Bom cinema, mau cinema, boa televisão, má, marcha tudo e em tudo ele descobre algo de proveitoso. Basta dizer que Christoph Waltz, o actor escolhido para encarnar a melhor personagem do filme, o encantador coronel das SS Hans Landa, veio da televisão austríaca. Na verdade, não basta, porque Herr Landa é o mau da fita que rouba o protagonismo a todas as outras personagens e as cenas a todos os actores que com ele têm o azar e a incrível sorte de contracenar. Sai um Oscar para a estrela da televisão austríaca, por favor, e barre-se na estatueta a quantidade certa de mérito e justiça. Para variar.
Hans Landa, coronel bem-falante (fala quatro línguas no “Basterds”) das SS, começa o filme como caçador de judeus na França ocupada, entrevistando um criador de vacas sobre a hipótese, longínqua, decerto, do mesmo andar a esconder judeus na sua propriedade. Sem querer estragar a cena quem ainda não viu o filme, embora se ainda não o viram, bem que mereciam apanhar com o spoiler na testa, a certa altura do questionário Landa saca do seu cachimbo, um simbólico Calabash que, quem conhece os livros de Conan Doyle, perceberia ser aquela peça de fumo a preferida dum tal Sherlock Holmes. É um momento subtil de revelação da personagem Landa, uma referência ao poder da mente analítica, que não escapa ao criador de vacas. Logo, o granítico francês dá-se conta de que aquele simpático caçador de judeus não vai na conversa do seu habitual número de respostas dadas em ditongos plenos de rusticidade e, ao longo do extenso diálogo entre as duas personagens, e enquanto a tensão cresce desde o início da cena, que é a primeira do filme, a litania imparável de herr Landa vai encurralando monsieur LaPadite como um rato.
Esta cena, em si, valeu o preço do bilhete (menos mal não ter levado comigo o myZONcard), e nem sequer é a melhor do filme. Talento número um de Tarantino: os diálogos. O rapazinho é mesmo bom a colocar palavras na boca das suas personagens e, ao fazê-lo melhor que ninguém, cria a história e, ao fazê-lo melhor que ninguém, cria momentos de insuportável tensão e, ao fazê-lo melhor que ninguém, cria o momento de que todos às tantas já estamos à espera em que nos rouba o tapete de debaixo dos nossos pés e dos das personagens que ele nos ofereceu de forma tão deliciosamente torcida, melhor do que ninguém, e é finalmente então que as mortes começam a acontecer e podemos respirar outra vez. Excepto que não respiramos. Os filmes de Tarantino vêem-se em apneia.
Os “Inglourious Basterds” de que fala o título original reporta-se a oito soldados americanos, liderado pelo saloio tenente Aldo Raine (Pitt) que são largados atrás das linhas inimigas para matar tantos nazis (Raine diz “Natzees”) quanto aqueles que tenham o infortúnio de se cruzarem com eles. Destes oito, nem todos têm direito a grande história durante o filme. Alguns não sobreviveram na sala de montagem, outros tombaram sem glória vítimas da ultraviolência que permeia todo o enredo. Talento número dois de Tarantino: o enredo. O moço tece quatro ou cinco histórias e todas elas acabam convergindo no capítulo final, atraindo todas as personagens que não morreram entretanto a uma ratoeira com direito ao visionamento de um filme dentro do filme que, segundo o realizador, é uma homenagem ao cinema europeu do meio do século passado.
E, nessa linha de raciocínio, chegamos à conclusão que “Inglourious Basterds” é um filme muito pouco americano e muito mais europeu. Primeiro, os actores que fazem de alemães ou austríacos ou franceses ou britânicos são realmente alemães ou austríacos ou franceses ou britânicos e não meramente actores britânicos a fazer de alemães ou austríacos ou franceses ou britânicos, como é típico nas produções americanas de filmes de guerra e/ou de época. Talento número três de Tarantino: o casting. Herr Landa, o nazi detective, é interpretado por um austríaco, Christoph Waltz. Shosanna, que se faz passar por Emanuelle Mimieux, a jovem judia vingativa que se vê dona de um cinema em Paris, é interpretada por uma actriz francesa, Melanie Laurent. Bridget von Hammersmark, estrela do cinema germânico que espia pelos aliados, é interpretada por uma actriz alemã, Diane Kruger. Archie Hicox, soldado britânico suicida e cinéfilo arreigado, é interpretado por um actor britânico, Michael Fassbender (que, vai-se ao imdb ver, realmente nasceu na Alemanha, cresceu na Irlanda e vive agora em Los Angeles, mas estão a perceber a ideia, certo?). E há mais exemplos, tantos quantos personagens há, e são muitos, e são inesquecíveis, vejam mas é o filme.
Entretanto, falemos de personagens históricas. Em contrabalanço a um Churchill que aparece numa cena e mal abre a boca, temos um Hitler completamente histérico, bem como Goebels com pose de cineasta, e até Goering e Bormann quando todo o círculo interno do Terceiro Reich vai a Paris ao cinema ver um filme sobre um atirador furtivo alemão e, ao contrário do que acontece na maioria dos filmes em que, sem querer, se faz dos nazis figuras vilanescas de cartoon, aqui isso acontece de propósito porque “Basterds” também é uma comédia, mesmo sendo bem negra como não podia deixar de ser. Talento número quatro de Tarantino: o humor.
Talento número cinco? Selecção musical. Ouvidos bem mais treinados que os meus encontraram David Bowie no meio da banda sonora, mas tudo o resto, bastante influenciado pela sonoridade do spaghetti-western, é igualmente bom.
Talento número seis de Tarantino: o pacote. “Inglourious Basterds”, assim mesmo, escrito com erros em ambas as palavras do título original, vale pelo todo tanto quanto pelos pedacinhos. E falando de pedacinhos, visto que é assim que boa parte das personagens acaba, em pedacinhos, quem tentar procurar uma moral durante ou no final do filme é porque entrou na sala errada. Enganou-se. Para os filmes Disney, favor seguir a fila de miudinhas fãs da Hannah Montanna. Para os filmes do Tarantino, favor deixar as noções de moral, o índex de eufemismos politicamente correctos e as eventuais sensibilidades gástricas à porta. De certeza que alguém olhará por elas enquanto você se estiver a divertir que nem um perdido no escurinho da sala.