"The Wire"
Esta não é uma série de televisão bem-educadinha. Não põe o dedo no ar, espeta-o fundo nas feridas. Não aborda os temas que aborda em bicos dos pés nem faz festinhas ao espectador preguiçoso que se contenta em ver a mesma história sacarina, temporada atrás de temporada, da sua série favorita. O modus operandi é o hiper-realismo. O tipo de coisa que o espectador comum, cada vez mais hipnotizado pelos reality shows e pelos ciclos noticiários vinte e quatro horas por dia, procura evitar a todo o custo. Nem é que lhe custe muito evitar, porque tem do seu lado a vontade dos executivos dos canais abertos em lhe filtrar aquilo que lhe faria impressão, lhe faria pensar. Não mostram para que não tenhamos de ver. Olham por nós, para que possamos fechar os olhos. Há aqueles que, agradecidos, retribuem o esforço, perdendo-se num tubo catódico cada vez mais cheio de aspirantes a estrelas, jornalismo de entretenimento, séries policiais em que é mais o corte do fato das personagens e as tecnologias destas que interessam.
Mas, sobre a série…
Nesta unanimemente considerada obra-prima da televisão americana não existe o Bem, não existe o Mal. Como Omar diz, tudo faz parte do jogo. Como Proposition Joe diz, tudo é negócio. “A Escuta” não é uma série policial, não é uma história sobre o crime. Seriam redutoras tais classificações. Não que os autores, David Simon e Ed Burns, tivessem o desplante de alguma vez lhe chamar isso, mas “A Escuta” será uma narrativa cultural sobre uma cidade específica, Baltimore, confrontando o espectador nesse palco de vielas e bairros sociais com os pés-de-barro da mitologia de toda a sociedade americana (muitas vezes vista como exemplo para o Ocidente) onde a corrupção é endémica e a panelinha é universal. A Justiça e a Redenção são apenas mais dois desenhos a giz no pavimento, dois nomes a vermelho naquele painel na Brigada de Homicídios.
Mais interessadas em estatísticas, cozinhadas e requentadas, se necessário, as chefias da autoridade policial de Baltimore tendem a preocupar-se apenas com as suas carreiras individuais, seguir assobiando para o lado na presença do amontoar dos corpos e empilhar dos casos que, mesmo chegando a tribunal, acabam quase sempre repelidos. Juízes enfastiados permitem que advogados de defesa bem pagos auxiliem os barões da droga e os seus séquitos a esquivarem-se a acusações, contornarem provas, darem a volta a testemunhas e saírem em liberdade. A vida continua. “A Escuta” começa de facto numa cena destas, com o detective espalha-brasas Jimmy McNulty, admitidamente pouco interessado em que se faça justiça, o que ele quer mesmo é ver os criminosos perderem uma vez, só uma que fosse, ignora a cadeia de comando para ir fazer queixinhas a um juiz mais diligente. Phelan arma um pé-de-vento que obriga as chefias a mexerem-se, a perseguirem a organização Barksdale que há demasiado tempo controla com mão de ferro (e muito chumbo) o tráfico de droga. As chefias, querendo apenas aplacar os humores do Sr. Dr. Juiz, montam então uma operação-fantoche constituída quase só por fracos polícias e pessoal há muito nas prateleiras liderada por Daniels, um tenente preso pelas suas ambições pessoais e um passado pouco claro, fácil de controlar. O sucesso da operação não é tão essencial quanto é o habitual continuar sendo o habitual. Como castigo, McNulty é destacado para fazer parte da equipa e, lentamente, as coisas dão ideia de avançar.
Lentamente, porque “A Escuta” tem o ritmo de um romance, daqueles mais grossos e com muita atenção ao detalhe. Lentamente, porque uma boa história merece o tempo que for preciso para se desenvolver, para ser bem contada e para que as suas personagens se materializem e realizem. Lentamente, porque o trabalho de detective é, por natureza, lento, como lento é o da Justiça, e os autores da série, tendo à sua disposição no menu todos os lugares-comuns da narrativa policial televisiva onanista e confortável, resolveram rasgá-lo, atirá-lo fora e optar antes pelo realismo, mal passado, que é para não dizer brutalmente cru.
“A Escuta” é, então, de um realismo sufocante, imersivo, absolutamente claustrofóbico. É um trabalho com a intensidade rara da televisão literária que faz tudo para espicaçar aquelas partes sensíveis do nosso cérebro desesperadas por um pouco mais de substância. E será isso que David Simon e Ed Burns quiseram oferecer-nos. Apenas um pouco mais de relevância, criando uma história actual sem terem de se esticar muito em termos de ficção, e tão próxima do nosso mundo, tão humana que é difícil não nos revermos, mesmo nalgumas das características menos abonatórias das suas personagens. Estas, carregam a história tanto quanto a história as transporta a elas. Os polícias tanto quanto os criminosos porque, com “A Escuta”, gozamos do privilégio do ponto de vista dual. Nós, os espectadores, somos apenas a mosca nas paredes dos protagonistas. E será difícil dizer quem são as personagens protagonistas porque todas, passe o pleonasmo, desempenham o seu papel. Só a primeira temporada tem mais de sessenta personagens. Não podendo dividi-las entre os bons e os maus, porque tais superlativos estavam no menu que os autores rasgaram, podemos etiquetá-los de Polícias e os Outros.
Os Polícias.
Jimmy McNulty é o tal detective farto de jogar numa equipa perdedora. Não é o exemplo do decoro nem da disciplina, mas é dedicado ao ponto de lixar todos os outros aspectos da sua vida com o mesmo denodo com que lixa a sua reputação junto das chefias. Ele bebe, mas quem não bebe? É imaturo, também. Falta-lhe graciosidade na forma de interagir com as hierarquias mais altas. Investigar os Barksdale é ideia sua, mais outra que não agrada a ninguém no Departamento, pelo que lhe passa por cima para ir cochichar ao ouvido do tal Juiz Phelan, e mesmo só este tendo motivos pessoais para querer lixar os cornos ao Departamento é que lhe faz a vontade. O mau perder de McNulty ganhará assim a forma de uma bola de neve e porá em movimento uma engrenagem há muito tempo adormecida, desinvestida, desacreditada.
Para governar este milagre de fazer o Departamento dar ares de mobilidade ao Juiz Phelan, é escolhido, com alguma manha, o tenente Cedric Daniels, dos Narcóticos. Daniels tem uma pose de militar e uma seriedade austera, mas o seu passado faz parte de relatórios internos perniciosos e o futuro da sua carreira ainda é uma ambição sua, suficiente para que para que as chefias o considerem fácil de manipular. Gosta de fazer as coisas bem feitas, não é de admirar que alguns dos homens que lhe vão parar ao colo lhe causem má impressão, com McNulty à cabeça dessa lista. Vai ver-se entalado entre o entusiasmo contagioso de McNulty e a inércia preferencial dos seus superiores.
Com Daniels, vêm três elementos da sua equipa nos Narcóticos. Kima Greggs será a mais valorosa desse trio. É uma mulher numa guerra de homens, capaz de dispensar pancada como os homens, de beber tanto quanto eles, enfim, de fazer o mesmo trabalho com igual, se não maior, eficácia.
Herc e Carver, que são como que siameses de pais diferentes, ainda não completamente separados, e fazem um pouco a descompressão que nem as más maneiras de McNulty conseguem oferecer ao espectador. São brutos, porradistas, e não muito inteligentes. Contudo, incrivelmente úteis nas ruas violentas de Baltimore. São o músculo da unidade. Os capangas a serviço da Polícia.
Lester Freamon é um veterano detective há muito tempo confinado à prateleira que é a Secção de Penhores onde, basicamente, passou boa parte da carreira a fazer-se de morto. Apresenta-se um homem calado, aparentemente habituado ao pano de fundo, confortável nesse papel. Tem ouvido para o detalhe. Pouco gosto pelo alarido. Mostra serviço fazendo o trabalho sem terem de lhe pedir que o faça. Dos quatro veteranos que desaguam na unidade criada às pressas será o único que vale a ponta dum corno. Dos outros, não faz falta falar.
Falemos de Roland Pryzbylewski, “Prez”, para facilitar, genro de um Major da Polícia que, não querendo encolerizar a filha, distribui os disparates do jovem por unidades onde ele possa causar o menor estrago possível. Prez é amigo do gatilho. Mosquinha morta que ganha asas com uma arma. Não fosse o crachá, seria um sociopata. Rapidamente, por causa da sua inclinação para a brutalidade, vê-se confinado ao gabinete e às palavras cruzadas. Daniels tenta livrar-se dele, sem sucesso.
Sydnor é a compensação por Pryzbylewski. Agente bem preparado para o ambiente urbano de Baltimore, corajoso e empreendedor, chega mais tarde à equipa de Daniels e não tem problema em integrar-se. Acredita na missão e que pode fazer a diferença. É dos poucos que faz o trabalho policial ainda com o bem da comunidade em mente.
Bunk Moreland, não fazendo parte da equipa, é presença assídua nas investigações por se tratar de um dos melhores detectives de Homicídios que o Departamento tem. Como o clã Barksdale não se coíbe de recorrer ao assassínio para manter o seu império de drogas intocável, as averiguações de Bunk cruzam-se frequentemente com as da equipa de Daniels. Também é o melhor amigo de McNulty. Pode-se dizer, ao início da série, o único amigo que resta ao irlandês.
O Major Bill Rawls dos Homicídios não é amigo de McNulty. É um dos muitos superiores hierárquicos que McNulty desrespeitou quando foi falar com o Juiz. É um trepador, como quase todos no comando da Polícia de Baltimore. Só faz aquilo que beneficiar a sua carreira e mesmo isso, contrariado.
Acima deste está o Comissário Ervin Burrell, outra bela peça no puzzle estático-burocrático do Departamento cujo traseiro o Juiz Phelan, instigado pelas queixinhas de McNulty, faz o favor de pontapear. Acossado pela magistratura e pela imprensa, Burrell só a muito custo, e temendo pela vitalidade da sua carreira, levanta o dito da cadeira para fazer seja o que for. Quase tanto quanto os criminosos, os verdadeiros polícias de Baltimore têm de combater Burrell na tentativa de restituir à cidade alguma noção de ordem.
Quem se esforça por fazer passar um caso ou outro pela barra dos tribunais é Rhonda Pearlman, a assistente da Procuradoria. Sabe que o jogo está viciado mas persiste na sua missão e é a principal aliada de McNulty, embora nem sempre de modo voluntário ou consciente. Ela e o detective têm um passado truculento e uma amizade que, sendo sincera, também terá a sua porção de conveniência. Mais para o lado dele, claramente.
Os Outros.
Do lado oposto da barricada surgem os Barksdale e toda a sua entourage. A gota de água que faz derramar o copo do amor-próprio de Jimmy McNulty é causada pelo veredicto de inocente que D’Angelo Barksdale, jovem sobrinho do barão da droga de Baltimore Ocidental, recebe de um júri comprado no caso de homicídio que o implicava. Dee matara um rival em pleno dia e à vista de testemunhas. Apesar de ilibado, o tio castiga-o com uma espécie de despromoção na sua estrutura criminosa. Põe o rapaz a gerir o tráfico nos Edifícios Baixos. Sem saber que a sua absolvição motivara a Polícia a investigar os negócios do seu tio, Dee irá aperfeiçoar os métodos de venda dos passadores de droga, hoppers, no bairro social que lhe é confiado. Com ”Bodie”, “Poot” e Wallace, os seus mosqueteiros, Dee revela alguma inteligência e sensibilidade e, apesar de querer passar a ideia de que é o soldado perfeito para aquele tipo de guerra, aos poucos se torna óbvio que não será bem assim. Dee pode ter escapado à prisão, mas cumpre a sua pena trabalhando no negócio da família.
Avon Barksdale, o tio de D’Angelo, é apenas um nome de rua ao qual a polícia de Baltimore nem consegue juntar um rosto. Sabe-se que controla o tráfico nalguns bairros sociais, que é responsável por diversas mortes executadas pelos capangas “Wee-Bey”, “Bird”, “Stinkum” e “Little Man”, mas tudo não passa de rumores que carecem de substância. Nunca foi preso, é extremamente cauteloso. Não há provas contra ele, nem sequer causa provável para o inquirir. Cresceu naquela vida, herdou o negócio do pai e do tio, lutou com unhas e dentes pelo território que agora controla e beneficiou da inoperância das autoridades que, até McNulty ter tido a sua birra no gabinete do Juiz Phelan, nem sequer tinham vontade de o investigar.
O seu braço direito é “Stringer” Bell, o estratega da organização Barksdale. Stringer é um gajo bem-falante, inteligente e até educado. É um homem de negócios, um empresário, ou assim se julga. Gosta de pensar de avanço, prever problemas e resolvê-los com enorme frieza. Mantém a disciplina dos soldados e foca a atenção de Avon Barksdale nos negócios lícitos que o dinheiro sujo lhes permite contemplar. Muito mais do que um simples gangsta, é um gangster à moda antiga. É o cérebro que a unidade de Daniels terá de tentar derrotar no campo puramente intelectual.
Para isso, a operação contra os Barksdale contará com aliados inusitados. Bubbles é um deles. Bubs é um toxicodependente que se movimenta à vontade nos bairros sob o controle de Avon Barksdale. Ele conhece os principais homens de mão da organização e como a droga custa dinheiro, há muito tempo que se tornou informante, e amigo, da detective Kima Greggs. Passa o seu conhecimento à polícia a troco de dinheiro, auxiliando nas investigações e até indo além do que se é esperado dum bufo comum. De bom coração e sempre de olho na forma mais fácil de arranjar dinheiro, Bubs dá um rosto humano à multidão que se desloca várias vezes por dia aos bairros para comprar droga.
O outro aliado é um assaltante chamado Omar que rouba os traficantes de droga como forma de subsistência. É lendária a sua figura em Baltimore, temida e respeitada por quem tem de operar e viver nos bairros sociais. Menos bem quisto pela organização Barksdale que, farta de perder pacotes atrás de pacotes para o homem da cicatriz e da caçadeira, põe a sua cabeça a prémio. Omar encolhe os ombros e tira mais uma passa do seu eterno cigarro. Para ele a vida de street thug é constituída de umas quantas regras simples das quais não se desvia um milímetro. No meio do caos sistemático dos territórios de Avon Barksdale, Omar é a ordem intratável.
O Elenco.
Quando se fala em “The Wire: A Escuta”, no meio de tantas personagens inesquecíveis, a de Omar será a que mais facilmente nos virá à memória, mesmo anos depois de termos visto a série, mesmo sendo apenas uma personagem coadjuvante no meio de um elenco numeroso e de qualidade ímpar. Não admira que “The Wire” seja a série de televisão favorita de Barack Obama e que Omar seja a sua personagem preferida de todos os tempos. O mesmo sucederá com muita gente que tenha visto Michael K. Williams interpretar de forma irrepreensível o ladrão que desafia os traficantes de droga com o seu estilo de vida e o seu inflexível código de rua. Omar, consegue representar a esperança num cenário completamente desolador, tanto em termos urbanos quanto em termos humanos. A sua rectidão é como um raio de luz numa história muito negra e faz desta figura, nostálgica de uma era mais simples e objectiva, um sucinto herói pós-moderno. A personagem provou a sua valia desde o início, sobrevivendo até aos desígnios dos autores que tinham planeado matá-la no sétimo episódio da primeira temporada. Williams, antigo bailarino-coreógrafo e rosto (com cicatriz real, medalha de mérito duma altercação num bar) habitual dos clips de hip hop, ficou com o papel à primeira audição. Até integrar o elenco da série, o actor surgira apenas num par de filmes de acção e no papel de traficante em “Por um Fio”, de Martin Scorsese.
Quem também agarrou o seu papel com uma única audição, e esta ainda por cima enviada através do Atlântico em VHS, foi o actor britânico Dominic West que interpreta Jimmy McNulty. Os produtores da série, desesperados para encontrarem o McNulty certo, ficaram espantados com uma gravação vídeo de West a ler as falas duma cena, lutando com o seu sofá (que fazia as vezes de traficante que McNulty tinha de revistar) e aguardando em silêncio enquanto as outras personagens, ausentes na sua sala de estar, lhe forneciam as deixas. Primeiro, a produção em peso desatou a rir. Foram às lágrimas. Depois, começaram a prestar atenção. Dez dias depois, o actor aterrava em Baltimore. É um pouco assim que o desempenho de Dominic West, enquanto McNulty, funciona. A efervescência da personagem pode-se estranhar a princípio, mas depois percebemos que é esse nervosismo que dá à série o seu motor. West tem cara de sacana imprevisível. McNulty é um sacana imprevísivel. É impossível não gostar de ambos. Formado em Literatura Inglesa, fã de Tchekov e Tolstoi, Dominic West também concluiu o curso de música e teatro em Guildhall, pelo que a sua experiência nos palcos ingleses o ajudou a garantir o seu espaço no elenco dominado por actores chamados “de personagem”. McNulty será a sua personagem mais memorável, mas também pode ser visto em “Chicago”, “O Sorriso de Mona Lisa” e em “300”, por exemplo, para citar apenas projectos passados.
Com a crítica a revelar alguma dificuldade em ver os actores de “The Wire” noutros papéis, e isto no bom sentido uma vez que o trabalho do elenco é notável na sua composição realista, Lance Reddick, nativo de Baltimore, foi um dos protagonistas da série com maiores dificuldades em conseguir papéis de registo diferente ao do Tenente Cedric Daniels. Numa entrevista, Reddick confessou que esperava que “The Wire” fosse a sua porta para papéis mais variados e de maior visibilidade numa carreira que até ali tinha sido sempre a subir mas, na realidade, sucedeu o oposto. A veemência do seu desempenho enquanto Daniels, um polícia com aspirações a uma carreira maior, mais para satisfazer as ambições da mulher do que as suas, é de uma integridade artística impressionante. Como espectador, é fácil perdermos a noção de que é uma personagem e não uma pessoal real, ali no ecrã a debater internamente com a sua consciência do verdadeiro serviço público, que vai muito além do amealhar de divisas, e o sonho nem sequer muito seu de um percurso político. Daniels adora o que faz e, tal como Reddick, é soberbo no seu trabalho. Lance Reddick confessou em entrevistas a sua dificuldade em conseguir trabalho no cinema depois de esbanjar talento em “The Wire”. Com candura acima do normal, Reddick culpa o star system que governa Hollywood e Nova Iorque e não perdoa aos seus pares da indústria o desprezo com que “The Wire” foi votado em todas as cerimónias de prémios, desde os Emmy aos Golden Globes, onde a série não mereceu sequer uma única nomeação para o elenco ao longo dos seis anos de produção. O facto de “The Wire” oferecer uma grande maioria de actores negros e desconhecidos, embora com formação clássica e longa experiência de teatro, foi para Reddick um factor óbvio para esse desdém.
Andre Royo de forma magnífica dá corpo ao toxicómano Bubbles. De outro modo seria apenas mais uma vítima da invisibilidade causada pela cultura do umbigo. Royo obriga-nos a ver esta personagem sem salvação, a tentar percebê-la e, mesmo que não consigamos, só a quem faltar no peito aquela coisa que bate é que Bubbles passará completamente ao lado. Compreensível, talvez, se pensarmos que Bubs é uma figura imunda, um destroço humano. Mas humano à mesma, e por isso, mais imperdoável ainda se torna, como defende o actor nascido nos piores bairros do Bronx em Nova Iorque, a atitude generalizada para com o sem-abrigo e os toxicodependentes. Foi com eles que passou algum tempo preparando-se para o papel e foram eles os seus primeiros críticos, ainda antes do primeiro episódio ir para o ar. Exigiram-lhe que fizesse o trabalho bem feito, tendo atenção para as diferenças entre um viciado em cocaína e um em heroína, por exemplo. E Royo, com a sua formação artística e experiência de vida, não os deixou ficar mal.
Wendell Pierce faz o papel de Bunk Moreland, o perspicaz detective de Homicídios cujos casos se cruzam diversas vezes com os da unidade especial de Daniels. Como melhor amigo de McNulty, Bunk tem maior margem de manobra para lhe dizer as verdades, e Pierce dá voz a essas falas com uma naturalidade que nos leva a acreditar que aqueles dois homens se conhecem realmente de outros campeonatos. Dominic West e Wendell Pierce fazem o melhor par em “The Wire”. A forma como examinam uma cena dum crime proferindo apenas obscenidades, a cumplicidade das suas bebedeiras, os dotes para perseguir criminosos que se completam, tudo dá a ideia que um actor não brilharia tanto sem o outro. Não espanta que Pierce tenha ficado com o papel depois de o ler com Dominic West num casting. Bunk é, a par da personagem Rhonda, a consciência de McNulty. É o travão para os métodos pouco ortodoxos de McNulty, e o actor consegue desempenhar esse papel sem soar moralista ou paternalista. Wendell Pierce não tem grande interesse nos prémios que foram negados à série. Prefere a lealdade dos fãs de “The Wire” a qualquer tapinha nas costas da indústria. Como muitos actores que trabalharam em “The Wire”, o que mais lhe custou foi terminar a série e abandonar aqueles apartamentos partilhados com os colegas em Baltimore, onde passavam juntos seis meses por ano. A personagem que criou ficará para sempre no longo currículo do actor nascido em Nova Orleães.
Deirdre Lovejoy retrata uma das personagens mais positivas da série. A sua Rhonda Pearlman tem, por isso, um encanto diferente das outras figuras que deambulam por “The Wire”. Além de funcionar como contraposição convincente à manhosice do advogado dos Barksdale, Lovejoy soube transmitir no seu desempenho a faceta curativa que falta na vida da personagem de Jimmy McNulty. Amantes ocasionais, mais do que o sexo, McNulty procura nos braços de Rhonda um refúgio para as suas lutas internas. Deirdre Lovejoy não será a mais estereotipada beleza hollywoodesca e talvez por isso tenha ficado com o papel. A sua sensualidade é inegável, mas é real, e enquadra-se por isso na filosofia de verdade dos autores de “The Wire”. É Lovejoy quem melhor sabe dar o troco a algumas das falas mais imaturas de McNulty, e fá-lo com a naturalidade muito própria de uma mulher que nem sempre tem paciência para as tretas do homem de quem gosta mas que não será por isso que deixará de gostar dele. A actriz americana tem uma carreira sólida na televisão, com alguma preponderância para participar em séries policiais. “The Wire” será o seu melhor trabalho até à data, embora o mesmo se possa dizer de todo o elenco.
Clarke Peters, apesar de ter nascido em Nova Iorque, perseguiu os seus sonhos artísticos na Inglaterra porque, segundo ele, os pontos de referência americanos não estão centrados na literatura como acontece do outro lado do oceano, mas sim nos intervalos de cinco minutos que existem entre a publicidade. Mesmo com o reconhecimento que o seu desempenho como o Detective Lester Freamon na série lhe granjeou, Peters continua de costas voltadas a Hollywood e a preferir Londres, onde vive desde a década de setenta. Curiosidades sobre o homem que todos dizem ser o melhor actor que nunca ganhou um Oscar incluem ter sido amigo de infância de John Travolta. Um granjeou a imortalidade com “Brilhantina”, o outro quis ser um actor sério. A seriedade da sua personagem em “The Wire”, Lester, oferece à balbúrdia investigativa da unidade de Daniels a necessária calma, um centro para onde flúem todas as personagens, quanto mais não seja para que a voz grave de Peters (que também tem uma carreira na música soul) lhes explique o que está a acontecer. Ao contrário da bazófia e do ruído da grande parte das personagens da série, o papel de Lester exigia alguém que conhecesse a arte da subtileza. Actor de teatro há trinta e oito anos, Peters empresta a sua paciência à personagem. Com ele o reconhecimento universal também não chegou dum dia para o outro. Músico, dramaturgo, realizador são apenas outras facetas da sua criatividade e David Simon, criador de “The Wire”, já o fisgou para a sua próxima produção televisiva, desta vez centrada na cultura de Nova Orleães pós-Katrina.
Idris Elba, um actor inglês, tem no papel de “Stringer” Bell, a mente por detrás da organização criminosa Barksdale, uma mina de ouro que continua a dar frutos na carreira dele. A sua estampa física não é a parte que mais intimida no desempenho notável de Elba enquanto gangster de Baltimore Ocidental. “Stringer” não é um capanga mas sim um criminoso cerebral que tece os seus planos como um qualquer homem de negócios, excepto que na sua profissão as probabilidades de ter de mandar matar alguém são relativamente maiores, e “Stringer” não hesita. É essa total falta de sentimentos pelos outros seres humanos que faz da personagem tão ameaçadora. Ele não mata ninguém pessoalmente, mas tem uma longa lista de mortes nos seus largos ombros, e é com essa reputação que lidera. Dono de uma voz calma e firme que põe os soldados de Barksdale na linha, Elba proporciona a “Stringer” um magnetismo que rouba mesmo aquelas cenas em que não tem falas para dizer. Se McNulty é o motor da série, a quantidade de crimes que saem da visão inclemente de “Stringer” quanto à forma como se deve dominar o tráfico de droga num centro urbano fornece o combustível.
O elenco é vastíssimo e com grande parte das personagens a revelarem-se perenes de temporada para temporada, podemos sempre, apesar da curta duração de algumas cenas especialmente da segunda temporada em diante, rever com prazer os desempenhos dos actores a quem foi confiado um papel de menor exposição (mas nunca menor importância). Alguns actores conseguem performances que, sustentadas por uma equipa de guionistas sem igual, deixam a sua marca no nosso imaginário televisivo. D’Angelo Barksdale, por exemplo, o sobrinho do senhor da droga de Baltimore Ocidental, é uma personagem cuja natureza ambígua em relação à vida criminosa foi muito bem conseguida por Larry Gilliard, Jr. que lhe emprestou a dimensão humana que esta produção exigiu de todo o seu elenco. Gilliard, Jr. tem formação clássica em música e teatro e “The Wire” foi o palco perfeito para demonstrar todo o talento que tem. Wood Harris, no papel do seu tio, Avon, também consegue uma interpretação moderada que um passado como artista de hip hop do actor poderia não deixar antever. Avon, sendo uma personagem mais unidimensional, não deixa de ter os seus momentos de detalhe criativo dignos de nota.
Domenick Lombardozzi e Seth Gilliam encarnam com “Herc” e “Carv”, a ideia corrente daqueles agentes da autoridade mais amigos da persuasão violenta, mais físicos que perspicazes e com algumas das cenas mais descontraídas e divertidas da série. Os diálogos entre os dois são um gosto e oferecem o descarregar da tensão que o ambiente pesado da série provoca no espectador. Ambos têm uma extensa obra tanto em televisão como no cinema, sempre em papéis secundários, pelo que os seus rostos não serão os mais reconhecíveis. Sonja Sohn é Kima Greggs, a detective lésbica que é parte fundamental na equipa do Tenente Daniels. Sohn formou-se em Inglês e teve uma carreira na poesia antes de enveredar pelo teatro. A sua beleza natural é abafada pelo ar mais masculino que exibe em “The Wire”, embora a sua inteligência permaneça indisfarçada. A Jim True-Frost coube a personagem com o nome mais impronunciável. A dualidade raciocínio/emotividade explosiva de Pryzbylewski está bem entregue a alguém que veio da Broadway e contracenou em palco com William Petersen e Joan Allen.
Mais alto na hierarquia policial, as personagem de John Doman (Bill Rawls) e Frankie Faison (Ervin Burrell) oferecem aos seguidores fiéis da série as verdadeiras figuras vilanescas duma história sem heróis perfeitos. São polícias, mas também são políticos, no pior sentido de ambas as profissões, e desempenham as suas personagens execráveis com naturalidade. Entre estes e o verdadeiro trabalho policial está o Sargento de Homicídios Jay Landsman, o gestor da harmonia do departamento. Delaney Williams, outro actor de teatro, vai muito bem como o veterano que sabe reconciliar a psicologia mais activa dos agentes que trabalham nas ruas e a passividade interesseira dos superiores sentadinhos nos seus gabinetes sempre de olho em gabinetes maiores. Landsman é também o filósofo da série, sempre com algumas observações irónicas e profundas sobre o trabalho e aqueles que o fazem.
Saltando o muro para as ruas decadentes, os actores que dão vida aos “gangstas” também têm os seus momentos para brilhar. J.D. Williams é “Bodie”, um jovem não muito inteligente, mas com suficiente esperteza de rua para ir subindo na organização Barksdale. Tray Chaney é “Poot”, o melhor amigo com quem ocasionalmente partilha o sofá no pátio dos Prédios Baixos, verdadeiro trono do tráfico de droga nos bairros sociais. O grupo é completo por Michael B. Jordan, ou Wallace, o mais novo e mais centrado dos três. Todos estes actores são bastante jovens e mesmo assim dão boa conta de si. Nos papéis de traficantes e assassinos, personagens que empurram a história em diante por dar às outras o que fazer, a produção soube escolher um elenco sólido, mesmo naqueles papéis mais passageiros. A qualidade dos guiões assim o reclamava.
Nas temporadas seguintes, aqueles que permaneceram inamovíveis na sua admiração pela série, puderam ser presenteados com as interpretações excelentes de James Ransone (o destravado “Ziggy”), Pablo Shreiber (Nicky, estivador cuja falta de trabalho o leva ao crime), Chris Bauer (como Frank Sobotka, o líder sindicalista das docas de Baltimore), Robert Wisdom (Major “Bunny” Colvin, com ideias revolucionárias quanto ao problema das drogas na sua cidade), Aiden Gillen (Vereador Tommy Carcetti, um político jovem e ambicioso), Chad Coleman (“Cutty”, um ex-presidiário retornado às ruas que já dificilmente reconhece), e muitos outros actores em tantos outros papéis muito bem pensados e executados.
Os Autores.
David Simon, o criador da série, veio do mundo do jornalismo precisamente de Baltimore. Repórter criminal do “The Baltimore Sun”, ao longo duma dúzia de anos a sua paixão pela profissão foi colidindo com a viciação das instituições municipais e decadência progressiva da vida urbana. Publicou dois livros amargos sobre a sua experiência antes de, desiludido com o jornalismo corrente, se dedicar ao guionismo. Não por achar que a ficção, hoje em dia, é a melhor forma de fazer chegar às pessoas narrações fidedignas sobre a realidade, mas para que certas histórias, que de outra forma permaneceriam ocultas, possam ser contadas e alcançar um público mais abrangente. Produtor e argumentista de “Homicide: Life on the Streets”, série baseada nos seus livros e produzida por Barry Levinson que passou cá no segundo canal (e mais tarde na TVI às tantas da madrugada), fartou-se das discussões criativas com os executivos da NBC e tentou a sorte no canal HBO, para o qual criou e escreveu (com o co-autor Ed Burns) “The Corner”, sobre os efeitos nefastos da cultura da droga numa família de Baltimore. Nessa série multi-premiada do ano 2000 trabalharam muitos dos actores que viriam a engrossar o elenco de “The Wire”, como são os casos de Lance Reddick, Clake Peters e Corey Parker Robinson, por exemplo.
Continuando a viver em Baltimore e a testemunhar os efeitos da corrupção a alto nível nas ruas, Simon pensou então em “The Wire”, com o intuito de, nas suas palavras, “provocar uma zaragata” com os poderes instalados na sua cidade. Com um período longo de pré-produção, cheio de avanços e recuos, como é típico do meio televisivo, a HBO finalmente deu luz verde e a produção propriamente dita arrancou em 2002. Como parceiro, Simon trouxe consigo Ed Burns, antigo detective de Homicídios de Baltimore com quem escrevera o livro “The Corner: A Year in the Life of na Inner-City Neighborhood” e que conhecia melhor que ele os meandros dos departamentos de polícia. Tanto assim era, que Burns abandonou essa actividade para se tornar professor.
Juntos, com o apoio do HBO, criaram uma história amargurada sobre a dura realidade de Baltimore, vista desde o nível das ruas aos mais alto gabinetes dos cargos públicos, do toxicodependente ao senador. Com alguma ironia e muita honestidade, denunciam o estado das coisas na cidade que sentem ser ainda deles. A obra que fica acaba, contudo, por abordar temas que problemáticas que são universais. Principalmente pela sua humanidade, as drogas, o tráfico, a corrupção, as relações pessoais, a violência, o sistema de justiça, a amizade, a ética, são temas que tocam todos os quadrantes sociais e culturais, não sendo de maneira alguma necessário ter-se uma experiência americana para descobrir, muito facilmente até, tiques institucionais existentes também na nossa realidade sócio-política.
“The Wire” fica assim para a história como um tratado antropológico, um manual de sociologia aplicada às comunidades urbanas, um documentário honesto sobre a cultura do crime e o fracasso a toda a linha da celebrizada “guerra contra as drogas”, que não passa duma guerra às classes mais vulneráveis da sociedade, com uma imparcialidade que nem sempre se vê no jornalismo dito sério, quanto mais em produtos de ficção e entretenimento. “The Wire” apenas mostra as coisas como estas são. Não toma partidos nem empresta glamour a coisa alguma. Não é moralista. Quem vê a série, e gosta, depressa é compelido a tirar as suas próprias conclusões sobre tudo o que ela mostra. Torna-se tão fácil detestar as traficâncias daqueles que detêm altos cargos públicos como aquelas dos hoppers que à força da bala dominam o negócio da droga nos bairros sociais, podemos antipatizar visceralmente com as tácticas torpes do Comissário de Polícia com a mesma prontidão com que os assassinatos e a violência nos causam impressão. Omar, o assaltante de traficantes de droga é tanto um herói quanto McNulty, mas um e outro existem em lados diferentes da barricada. Se é que esses lados existem, realmente.
A série, que pega no que é comummente descrito como o trabalho policial mais chato de todas, a vigilância, nunca alcançou grandes audiências, mesmo para os níveis do canal HBO. As três primeiras temporadas foram quase e só privilégio da crítica que se rendeu em massa e de um movimento de culto que passava a palavra a quem não conhecia “The Wire”. Simon admite que a série, pelo seu ritmo paciente e a sua densidade literária, não era das que mais naturalmente recrutasse novos públicos a meio. Quem tentava entrar a meio de um episódio, qualquer episódio que fosse, era abalroado por dezenas de personagens e múltiplos sub-enredos. Simon sempre defendeu que a série era um produto exigente. Cada diálogo tinha importância para a história e por vezes, uma coisa que se dizia num episódio apenas se desenvolvia noutro, dois ou três à frente. E quando as personagens estão caladas, um espectador chegado a meio da história não estaria atento aos seus trejeitos, aos seus suspiros e às suas expressões próprias, partes integrais do guião e pistas fundamentais para a história no seu todo. “The Wire” exige a nossa atenção, toda a nossa atenção. Exige, tal como aos polícias o fazem no ecrã, que escutemos cada palavra dita pelos intervenientes, tal como aos criminosos que estejamos vigilantes e, a esse nível, é bastante mais exigente que o típico produto de ficção televisiva. Por outro lado, a recompensa para o espectador é, também ela, incomparavelmente superior.
A HBO, com quem tenho o desgosto de ter cancelado “Deadwood” antes da prometida quarta e última temporada, apesar das más audiências manteve “The Wire” no ar e permitiu a Simon concluir a sua história. Valeu para esse efeito o recrutar de escritores consagrados na área do romance policial, como Dennis Lehane (autor de “Mystic River”, por exemplo), George Pelecanos (autor de “Shame the Devil”), Richard Price (autor de “Clockers”) para escreverem os guiões de alguns episódios e servirem de consultores criativos da série. A qualidade da escrita vai buscar a sua força não só aos enredos bem estruturados (muito para lá do entediante Bem contra o Mal), mas principalmente à linguagem cuidadosa e densamente pesquisada ou, no caso de Simon e Burns, que são de Baltimore, experimentada pessoalmente. As personagens, soando reais, validam a história. Os cenários, sendo toda a série gravada em Baltimore, não poderiam ser mais autênticos. Muitas das personagens co-adjuvantes são mesmo figuras conhecidas dos habitantes da cidade. David Simon diz que não arranjou amigos na Polícia, nem na City Hall, nem no sistema educativo ou na imprensa de Baltimore ao ter produzido a série, mas vêem-se antigos políticos a fazerem a sua perninha como actores. Desde um ex-Governador a um ex-Comissário e até antigos polícias, alguns dos quais inspiraram as personagens da série, como Jay Landsman, para citar apenas um exemplo de uma pessoa que existe realmente, e algumas outras personalidades trabalharam ainda atrás das câmaras como consultores.
“The Wire: A Escuta” é uma obra de culto provocadora que tentou fazer elevar os padrões do género, embora David Simon se recuse a chamar-lhe uma série policial. Com razão, porque vai muito além dessa etiqueta. É um produto para quem espera mais das suas séries favoritas e muitas vezes não obtém o que deseja. Funciona muito melhor se visto do princípio ao fim e por isso a sua longevidade nas prateleiras das lojas de DVD’s será superior ao das séries normais. Não me refiro ao seu sucesso de vendas, obviamente, porque não é uma série tºao famosa quanto outras, nem é uma série que nos conforte sobre o mundo em que vivemos, ou nos permita escapar dele durante umas horas. “The Wire” é subversiva na mensagem e no conteúdo tanto quanto o foi nos seus processos criativos e de produção. É documental no melhor sentido da palavra. É estilizada, apenas porque não é normal a ficção televisiva dar-se a tais trabalhos para parecer real. O normal é o oposto. “The Wire” é contrária a tudo o que seja simplificações narrativas e maquilhagens temáticas. Não é um mistério a resolver no fim de cada episódio. Não é uma história em quarenta e quatro minutos. É uma história em cinco capítulos de treze horas cada um. E, muito importante, lembra-nos que a história é o que mais interessa.
Nunca deixando de ser ficção e entretenimento, “The Wire” é também um espelho inclemente da sociedade moderna e das filosofias contraditórias da vida em comunidade. Por ser tão abrangente na temática escolhida, é capaz de falar ao coração das audiências em quase todo o mundo moderno. É ambiciosa a esse ponto, quer que pensemos, não apenas que sintamos. Embala-nos numa crueza panorâmica da realidade, e isso não será para todos os públicos. Mas o seu valor é quase, se não completamente, pedagógico pela sua autenticidade meticulosa e sem concessões. “The Wire: A Escuta” é um momento raro na história da televisão, não só no género de ficção, onde está acima de quase toda a produção disponível ao público, mas também porque consegue ser um fenómeno sociológico de enorme valia até para aqueles menos inclinados a gostar deste tipo de entretenimento.