“O informante” (The insider)
“O informante” (The insider)
Padrões elevados. Guarde essa cifra, você vai precisar dela para assimilar o conteúdo do que, efetivamente, se passa em “O informante”.
Em 1986 teve lugar em São Paulo, no hotel Transamérica, o então denominado Primeiro Encontro Internacional de Mídia. Dentre os vários assuntos tratados pelos maiorais da comunicação, destacou-se o case dos Quadrinhos Japoneses, que vendiam nas bancas 3 milhões de exemplares por semana. Detalhe: cada exemplar continha 300 páginas. Mil e duzentas páginas no mês, sendo exatamente isso o que arqueou as sobrancelhas do Encontro: a quantidade de informação consumida.
Ora, “O informante” tem 157 minutos de duração, ou, se preferir, de informação, e narra a história verídica de personagens verídicos, envolvidos em dois atos de heroísmo contra a mais poderosa máquina de dinheiro x (vezes) advogados que se tem notícia. Essa máquina atende pelo nome de indústria do tabaco.
Exatamente isso arqueou as sobrancelhas da Academia em 99 (sete indicações) porque, enquanto para nós essa luta de tribunais foi assunto para o jornal das 8 nos anos 90, para eles, os USA, foi e continua sendo o maior litígio em números - US$ 246 bilhões pagos em indenizações para o estado do Mississipi e 43 outros estados. Quem pagou a conta foi a indústria do tabaco. Quem viu nessa história a possibilidade de virar cinema de primeira qualidade foi o diretor e co-autor do roteiro Michael Mann. Michael tem um olho clínico sui generis. Ele tirou da esfera policial o detetive Dennis Farina, em 1980, e o levou para as telas. Olho clínico...O primórdio do cinema jamais foi visto como arte e sim como objeto de curiosidade científica. Na virada de 1900 o olho clínico de Georges Meliés transformou a abordagem científica em figurinos, efeitos especiais, dramatização, etc., e eis o cinema como grande veículo difusor de cultura. Mann pegou uma história transbordante de efeitos éticos num artigo de Marie Brenner e nos deu uma autêntica visão da sétima arte sobre, fundamentalmente, o que podem e devem ser considerados como atos de heroísmo as convicções de dois cidadãos.
Al Pacino na pele do renomado e tarimbado jornalista investigativo e produtor do “60 Minutes” Lowell Bergman.
Lowell foi discípulo de Herbert Maucus, Marcuse, se preferir, e, padrões elevados, como já se disse.
Mantendo o padrão e com o mesmo peso na balança do arrojo, Russell Crowe como Jeffrey Wigand.
Currículo de Jeffrey: Johnson & Johnson, Union Carbide, Pfizer, na qualidade da administração com a chancela de “diretor”. Terminou seus dias de administrador na Brown & Williamson, empresa subordinada ao ramo de tabaco e ligada a pesquisa. Jeffrey é químico, ele mesmo atesta que alguém de seu naipe tem de ser a um só tempo um cientista e um empresário. Largou o ramo de saúde e foi para o tabaco porque o dinheiro era graúdo. Ele mesmo reconhece ter aceito o dinheiro. Seu primeiro encontro ao vivo com o jornalista traz o seguinte:
- Você tem dados vitais, que o povo deve saber, para o seu próprio bem estar e você se sente compelido a revelá-los. Por outro lado, você tem um acordo de confidencialidade com seus últimos empregadores. Assim, você tem um dilema – formula Pacino, sem forçar a situação.
Michael Mann proseia com veia de escritor e não nega uma predileção pelo plano fechado, pelo close, o que se desdobra numa estranha habilidade, já que ele faz com que isso funcione o tempo todo sem cansar. Esse estilo, ou antes esse tino de criar situações de cinema ambientação x (versus) edição indicam que só mesmo numa segunda olhada o espectador estala a língua no prazer da absorção perfeita.
Nos créditos finais, a produção faz questão de colocar, numa disfarçada ironia, que algumas situações foram dramatizadas, como por exemplo as ameaças à Crowe e sua família, mas nunca se soube de onde elas partiram...
Crowe, the insider, o cara de dentro, revela o que havia sido acordado e que não poderia ser revelado, a notícia de que a indústria do tabaco está no ramo da “entrega de nicotina”. Como a nicotina é entregada, através de uma seringa?
O heroísmo dos heróis está intimamente vinculado ao preço que se paga, sempre. Pacino parece ter vindo ao mundo para ilustrar aos pobres e ricos mortais como a eficiência humana pode funcionar na base do brio, como um jornalista vive em conformidade com seu código de ética, mesmo remando contra a maré e salientando “não estou à venda” quando querem colocar nele uma etiqueta.
As primeiras cenas do filme servem para mostrar que tipo de jornalismo Pacino e Christopher Plummer fazem, este último no papel de um renomado entrevistador da CBN, ou se preferir, do “60 Minutes”. Trata-se de uma reportagem no oriente médio, com armas de fogo e fundamentalistas, por um triz a estética de Mann lembra “Syriana”, rodado anos depois, e em cheio as cenas mostram que as vezes, para se aparecer na frente de uma câmera, é necessário uma dose de fibra surreal.
Crowe, pai de família e provedor. Ele usa poucas palavras no núcleo familiar para contornar a situação do recente desemprego e conseqüente perda de status. Uma de suas filhas tem problemas de saúde, ele precisa do convênio médico que seus ex-patrões se comprometeram a pagar, desde que, claro, ele se mantenha no anonimato.
Ocorre o segundo encontro com Pacino. Crowe confessa ter certa dificuldade emocional quando está sob pressão.
- Depois do que você vai contar – diz o jornalista – haverá um juízo no tribunal da opinião pública.
(Essa expressão, “tribunal da opinião pública”, será usada mais uma vez noutro período da trama, por outro personagem, e, tomando por base os padrões atuais, pelo menos os expostos aqui na terrinha, duvida-se um tanto de seu poder, seja em conceito, seja em palavra falada. Todavia, a ação se passa noutra cultura, no meio da década de 90).
- E você acredita nisso? – indaga Crowe.
Pacino afirma que sim. Ninguém tem Marcuse como mentor impunemente.
Crowe não tem tanta certeza e alega que pessoas como ele e sua família, quando abrem o bico, para diversão dos espectadores de domingo e seu voyeurismo barato, ficam mesmo abandonadas, usadas, falidas, sozinhas.
Pacino rebate.
- Não fuja de uma resolução que é sua questionando minha reputação, pois enquanto você participa de torneios de golfe para a “cultura de vendas” do tabaco, estou lá fora, dando minha palavra e provando-a com atitudes.
Vale lembrar que Lowell Bergman (Pacino) é um personagem de carne e osso, e até 1999 era correspondente da série “Frontline” e membro do corpo docente da Universidade de Jornalismo de Berkeley, CA. Na CBS, o caso Crowe foi seu último trabalho, por opção dele mesmo, pois naquele ponto da história americana começara a fazer sentido a idéia de que os últimos guardiões do jornalismo investigativo estavam com os dias contados. Dá a impressão de que os episódios retratados em “The insider” foram uma espécie de ensaio anunciando o fim de uma era.
Os 157 minutos regidos por Mann tem marcos precisos que só mesmo a cadência da realidade pode assim se manifestar, ou seja, não são ações e reações roliudianas de capa espada, são o desenrolar da própria história.
Crowe finalmente abre o jogo e concede a exclusiva ao veterano Mike Wallace (Christopher Plummer), o programa fica um brinco e de quebra, correndo em paralelo, Crowe fala para um tribunal do Mississipi, que já estava processando a indústria do tabaco, sendo o depoimento dele vital para o ganho de causa.
Como esses caras, ou se preferir, a indústria do tabaco, consegue perder um processo de 246 bilhões de dólares? Lembrando que bilhões são milhões com “b”. Quantos funcionários não existiam a par da mesma informação nesse período? A informação de que a “entrega de nicotina” estava sendo cada vez mais manipulada para que sua dependência, até então negada, fosse cada vez mais exacerbada?
Começa da forma mais banal do mundo. Com o patrão de Crowe fazendo uso excessivo e injustificado do poder. É sempre assim, tenha o gajo um terno ou uma vassoura, se ele puder tiranizar o próximo, o fará sem pestanejar. A têmpera do próximo, porém, foi mais forte. E ele contou com o anjo da guarda Pacino, escrupuloso e competente, como todos deveríamos ser.
A contrapartida da máquina do cigarro entrou com tudo para frear a história, e seu primeiro passo foi tentar forjar um perfil negativo do Dr. Wigand.
De acordo com a Associated Press. e o The NY Times, o outro lado da mídia, através do Wall Street Journal, estava forjando uma indizível infâmia baseada em nada contra Crowe. A tática do tabaco seguiu a cartilha: primeiro eles te desacreditam, depois te crucifixam.
Nessa batalha, precisou de uma mente jornalística para deter a outra e precisou também de uma imprensa livre e sabedora de sua responsabilidade. Pelo menos parte dela.
O futuro de um estava seriamente ameaçado (Crowe, que corria o risco de ir para a prisão pela quebra da cofidencialidade) e a carreira profissional do jornalista, pois dada altura a CBS News entra em choque com a CBS Corporate. O guerreiro produtor do “60 Minutes” fez sua opção.
Algo do tipo - você não luta e também não corre, mil conseqüências negativas cintilam no horizonte mas no final de contas o correto sobrepuja, contra toda a lógica conhecida e praticada.
Um dos combustíveis para fazer prevalecer esse triunfo conquistado a duras penas reside na própria história do jornalismo da CBS e no lendário Edward Murrow, que desafiou o macartismo. Quando você tem um passado positivo em meio a uma demanda dessas proporções, você fatalmente vai precisar dele para te impulsionar.
Pacino fez o que qualquer um na posição dele poderia fazer a todo instante mas não faz, por omissão ou preguiça. Medidas exatas que ele não tem e na posição dele pode-se interceder - através de telefonemas e de encontros cara a cara, para que não se cometam injustiças.
Nos últimos 40 minutos “The insider” mostra uma batalha de palavras e de raciocínio afiado nos lugares certos e com as pessoas certas.
Pode-se pensar que essa batalha marca o fim, o derradeiro baluarte do debate confiável da mídia versus grandes corporações, já que essas, nos últimos 10 anos, suplantaram totalmente a primeira, e da forma mais banal que existe: comprando-a. Em meados dos 90, no entanto, esse duelo de poderes se enfrentou de igual para igual.
Mike Wallace, com meio século atuando no ramo e tendo estampado no semblante “a notícia em primeiro lugar”, ao ver seu material mutilado para servir interesses outros que não o do compromisso com a ética de sua vocação, chama o editor alternativo de “lacaio corporativo”.
A advogada Helen Caperelli (Gina Gershon ), a soldo da CBS Corporate, tenta amenizar a situação:
- Mike...- diz ela.
Ele sorri para ela e prova que um velho leão ainda é um leão.
- Mike? Tente dizer sr. Wallace. Estamos na mesma empresa, mas não na mesma profissão.