EM QUADRO - A HISTÓRIA DE 4 NEGROS NAS TELAS
Num dado momento do documentário “Em Quadro – A História de 4 Negros nas Telas”, a atriz Ruth de Souza apraz, com seu depoimento rico, objetivo, congruente e desconcertante que “não estou descontente com nada do que fiz não, o coadjuvante que se sobressai também é muito ator”. Sábias palavras de quem veio, viu, sobreviveu e ainda vive num país extremamente desigual, mas que, contraditoriamente, ainda assim deu a ela a possibilidade de crescer e fazer um percurso a poucos negros permitido: fazer arte, no palco, diante da tela, e ainda assim com muita qualidade e sensibilidade.
Contando também com depoimentos singulares de Léa Garcia, Zezé Motta e Milton Gonçalves - todos os quatro personagens quase míticos da cinematografia e teledramaturgia negras brasileiras - todos os acima citados tiveram também o apêndice interlocutório para este documentário dos não menos incitantes Joel Zito Araújo, Cacá Diegues, Antônio Carlos de Fontoura e Roberto Farias.
Nessa conversa, que tem seus momentos memorialísticos, mas também de tensão, devaneio, utopia e esclarecimento, vemos com eles (e através deles) uma panorâmica sobre o papel e a inclusão do negro no cinema, teatro e televisão brasileiros até o presente momento. Percebe-se que todos os depoentes se mostram insatisfeitos com os resultados até agora alcançados, mas reconhecem que a dura batalha aos poucos está se tornando mais igualitária, com atores e atrizes negras descortinando o velado véu que impedia a todos de protagonizarem papéis relevantes no cenário nacional. Se hoje Taís Araújo, Lázaro Ramos, Camila e Antônio Pitanga e tantos outros colhem frutos maduros, é porque antes existiram léas, ruths, zezés e miltons, vários, diversos, intensos, comprometidos e progressistas, a criarem situações inéditas para a performance do artista negro na produção brasileira.
Nenhum deles se furta a lembrar seus passados e falar de temas espinhosos e outros nem tanto, como da figura emblemática e carismática de Grande Otelo e seu relacionamento com o meio que o venerava ao mesmo tempo que o relegava a uma repetição sem fim de um mesmo papel caricatural, ainda que cultural e artisticamente relevantes; a importância do Cinema Novo e suas descortinagens em busca dos brasis imersos e adormecidos dentro do Brasil, com suas tonalidades e vozes diferentes (às vezes até divergentes); de “A Rainha Diaba” (onde Milton Gonçalves traveste-se de maneira sublime, inteligente, inspirada e contagiante, mas não sem dúvidas atrozes de até onde poderia ir com um personagem tão complexo, e de onde seguramente Lázaro Ramos bebeu severamente na fonte, para compor o seu também genial Madame Satã muitos anos depois).
Outra entrevista muito importante no filme de por Luiz Antonio Pilar é a de Zezé Motta, que rememora sua impagável Xica da Silva, que elevou-a ao mundo hedonista das capas de revista, com o status de sex symbol.
Engana-se, porém, quem pensa que todo o trajeto do negro diante das câmeras e nos palcos foi feito de maneira linear e gradual, ainda que lenta. Em seus depoimentos, todos são unânimes em afirmar as dificuldades encontradas em cada entrevista para um novo trabalho, as intransigências de certos produtores, o olhar e as palavras mal disfarçadas dos poderes dirigentes, as dificuldades junto ao mercado publicitário e as complexidades para o negro que se propõe a dirigir um trabalho. Num dado momento, Milton Gonçalves, por exemplo, comenta que depois de "A Rainha Diaba" ficou cinco anos sem filmar, pois havia uma falsa ideia de que se tornara um artista (negro) caro.
A teia difusa que (ainda) impede muitos de de protagonizarem papeis de ponta está explicitada nessa conversa quase informal, mas que realça com apuro técnico, respeito profissional e ético, e - acima de tudo - com inteligência argumentativa, as indicações de como vão as coisas nos bastidores desse veículo protoimagético que domina o discurso nesse momento em que o mundo é quase que só imagem.
Para isso, temos que reparar na importância de quem se dispõe a problematizar a inserção do negro em todas as camadas sociais, culturais, políticas, econômicas e profissionais. E isso o filme faz, com sutileza e sem ceder às imposições mercadológicas que orquestram o viver diário.
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(“Em Quadro – A História de 4 Negros nas Telas” (91´, Bra, 2009, colorido - com Ruth de Souza, Lea Garcia, Zezé Motta e Milton Gonçalves - part. especial Joel Zito Araújo, Cacá Diegues, Antônio Carlos de Fontoura e Roberto Farias - argumento, roteiro e direção Luiz Antonio Pilar)
Produção Lapilar / Black Preto Prod. Artísticas