“Sobre Meninos e Lobos” (Mystic River)
“Sobre Meninos e Lobos” (Mystic River)
Se você for pensar que o moinho central da película terá no seu ápice a aprovação dela, julgando-o o Macho Mor do planeta, por ter condenado à morte seu amigo de infância, consignando assim a virilidade à condenação terminal de um semelhante, condenação essa baseada em suspeita sem provas, e que isso nos é dado “de barato”, de bandeja, feito amendoim de festa, ou seja, isso é legal, ou mesmo lícito, resta por fim o raciocínio de que o grande abracadabra do cinema é a transfiguração.
Clint Eastwood dirige.
Sean Penn veste o papel daquele que condena. Tim Robbins, o infeliz condenado, por sinal desde a infância, pois esta foi ceifada por dois homens que entraram na sua rua dirigindo um suposto carro de polícia. Uma cena banal orientada por um diretor com dois olhos. Um enxerga a cena, o outro a transforma num pedaço de cinema, de tonalidade obscura e caracterizada pelo ritmo surdo que anuncia uma infância a ser roubada. Tim Robbins passará o resto de sua vida marcado pelo estigma desse evento, tido pelos que o cercam como um tipo esquisito, capaz mesmo das coisas mais hediondas. Até sua esposa acreditará nessa idéia.
Sean e Tim levaram os Oscar de Melhor Ator e Melhor Ator Coadjuvante, respectivamente. Por aí emerge o naipe do entretenimento.
“Sobre Meninos e Lobos” não é um filme sobre idéias, sendo entretanto a grande idéia o fato de ter sido adaptado e rodado. É um filme sobre o pequeno universo que ronda cada ser humano, repleto dos piores instintos que ele possa ter, evidenciando que eles não foram suplantados pela modernidade do consumismo e dos foguetes à Lua e estão tão presentes quanto nos tempos de Calígula. Tão sombrios e tão a flor da pele que um encadeamento de fatos os traz à tona. Não seria necessário o assassinato da filha de Sean para emergi-los. O enredo conta com isso para movê-lo e justificá-lo, mas na realidade semelhante a sugerida pelo enredo, tal universo vive à espera dessa manifestação e sua sensibilidade é delicada, tão delicada como se uma folha se soltasse de uma árvore e em virtude disso as Bolsas de Tóquio e Nova Iorque despencassem.
Esse fator “transfiguração”, próprio do cinema, só seria bem explicado em cinemês, item do qual não me atrevo, mas posso muito bem citar uns exemplos, tais como “Volta pra casa, amor”, Rock Hudson e Doris Day numa farsa que é pura safanagem, as mulheres saindo das festas que ele organiza dentro de cases de contrabaixo, completamente de pileque, e, o que você acha que elas estavam fazendo? Jogando gamão? Ocorre que o figurino pastel, a música adocicada e a postura dos atores, suas falas dúbias e impecáveis leva o público a nem notar a natureza das coisas. Outro exemplo, aquele passarinho do sétimo céu chamado Audrey Hepburn em “Bonequinha de Luxo”. O que você acha que ela fazia?
A natureza das coisas em “Mystic...” é muito mais intensa do que explicita os fatores cênicos expostos por Bacon/Sean/Tim. A crueldade, a condenação e crítica, o vazio e a estupidez são os alvos maiores do espetáculo e não menos dissimulados pelo diretor que, antes de mais nada, conhece os fatores e pensa em cinema. E se pensa em cinema, concretiza a transfiguração.
John Houston trazia no colete o seguinte ditado: “cuide de cada diálogo como o diálogo mais importante do filme, e o resto anda por si”. Eastwood meteu a mão na massa sabendo tratar-se não de um filme sobre efeitos especiais, mas sim um filme calcado nas interpretações. Essas fórmulas tiveram a adição natural do berço de onde veio o roteiro: o livro de Dennis Lehane.
Nossa insondável cultura tradutória, cuja capacidade transformou Mystic River em Sobre Meninos e Lobos, se deu ao luxo de assistir o filme, senão de ponta a ponta, ao menos nas cenas em que o personagem em eterno transe Tim Robbins fala para si mesmo sobre o menino que fugiu dos lobos.
“Mystic...” é uma comédia de erros narrada como tragédia, onde personagens toscos, ou antes figuras humanas pobres de espírito, se dão ao luxo de fazer traduções errôneas sobre os semelhantes e agirem a partir dessas traduções.
Agem de acordo com seus próprios códigos...como sempre.
Essa pobreza, no entanto, tem como contraponto a riqueza da abordagem cinematográfica de grosso calibre.
Sean está na primeira comunhão da caçula quando percebe o burburinho das sirenes policiais. Ele vai até a porta da igreja. Seja lá o que for, é ali perto, ele se aproxima, há um amontoado de repórteres, curiosos e homens da lei. Ele divisa rapidamente a traseira do carro da filha. O que se segue tem a qualidade Clint, a cena dos policiais contendo o pai desesperado que indaga: é minha filha (?!) para um Kevin Bacon impassível já que as palavras, aquela altura, eram desnecessárias, é uma cena digna de um filme candidato.
Eastwood tem perseguido há um bom tempo os infames ângulos do abuso de menores, seja de ordem sexual, retratado nesse filme, seja pelo aspecto do rigor de uma educação na base de pauladas, (Kevin Costner em “Um Mundo Perfeito”), ou no próprio horror, como em “Changeling”.
Sean, egresso da bandidagem e adepto da lei de Talião, aplicou-a no sujeito errado. Tim, abusado quando criança, conseguiu sobreviver à imorredoura lembrança do cativeiro, constituiu uma trôpega família onde a esposa, Márcia Gay Harden, prefere vê-lo como uma aberração do que o que ele na verdade representa – um sucesso disfarçado de fracasso. Até na hora de sua morte ele age com a coerência dos que tem consciência de si mesmos. O detetive Bacon mantém o distanciamento que convém a quem está do outro lado da linha, recebe um cheque do estado e usa gravata. Seu parceiro, Laurence Fishburne, fareja na direção errada e Laura Linney, a esposa de Penn, diz que ele é um rei e um rei tem de tomar decisões. Sejam elas quais forem.
Quando Sean recebe a notícia acerca dos verdadeiros assassinos de sua filha, percebe sua sina imutável face ao cosmo que age e reage à volta dele, pois são os mesmos assassinos de todos os sujeitos à lei do caos.