“A Vida dos Outros” (Das Leben der Anderen)
“A Vida dos Outros” (Das Leben der Anderen)
Desta feita não podemos acusar os tradutores de nada...
No mais, a realidade cria umas palavras que dão calafrio.
Glasnost e Stazi, só pra começar e já levando os desavisados a pensarem em pornografia diante de tais agrupamentos de consoantes e vogais, foram as colunas da realidade na Alemanha Oriental durante certo período.
Nós aqui nos trópicos tomávamos contato com essa dimensão através das manchetes dos jornais. Para quem vivia na RDA em 1984, passava o miúdo.
“A Vida dos Outros” tem o (justo) carimbo de melhor filme do ano, Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2007 e direção sem máculas de Florian Henckel von Donnersmarck.
A academia quando premia, premia.
A bestialidade do totalitarismo, lá, criou uma polícia com 200 mil informantes, além dos 100 mil efetivados. O nome dessa instituição era Stazi.
Com essa introdução, você não vai se surpreender com a bisbilhotagem analógica de um capitão da polícia, Ulrich Mühe, sobre o trabalho de um artista, na verdade um dramaturgo, Sebastian Koch, que apesar de estar nas graças do regime, nas horas vagas dormia com a bela Martina Gedeck, cuja regime achava graça. Todavia, nem em sonho dá pra rotular esse filme com essas linhas gerais. Dá pra ler essas linhas e saber que o que te espera é um trabalho de acertada premiação com tempero alemão.
“Fulano e namorada abriram presentes e depois supõe-se que namoraram...” datilografa o espia. Trata-se da transcrição de um “tape”. Tecnologia também cria vocabulário próprio. Quando ocorre a troca do turno, o novo espia coloca o fone de ouvido e comenta que prefere bisbilhotar artistas, pois estes tem relações sexuais, diferentes de padres e pacifistas. A exemplo, tal diálogo é isento do suingue de Dreyfuss e Cia. em “Tocaia”.
Na RDA tudo se assemelha a uma imensa COHAB e os gracejos tem a monotonia de um lápis preto dormindo sobre folha de papel branco. Mas não se leva um Oscar por isso, pois além está o retrato de pessoas tentando se comportar como seres humanos, voltando atrás, tentando de novo, cúmplices e reféns do sistema, o ministro quer a namorada do escritor, a namorada dorme com ambos, por amor e por dinheiro, nessa ordem, o escritor é um patriota acuado pela relatividade do conceito pátria e o espia chefe reconhece que a arte é a única saída para se suportar o dia a dia numa realidade regida pela chancela maior de Ditadura do Proletariado.
Em 1977 a RDA parou de contabilizar (e divulgar) as estatísticas relativas a suicídios ocorridos em seu território e os mesmos passaram a ser denominados de “auto-homícídio”.
Lembrando que, em termos de cinema, não é a luz do abajur que vemos, mas a labuta do diretor em fazer com que a mesma assim se pareça, Florian Henckel nos deu uma tonalidade muito precisa de como deve ter sido a luminosidade na Alemanha Oriental, tanto a de dentro quanto a de fora.
Para quem adora brincar de adivinhar o final do filme logo no começo, fica a misteriosa dica de: “dedicado a HGW/77 com gratidão”. Essa dedicatória está na folha de rosto de um livro que enlaça e finaliza a trama como há muito não se via.
“A Vida dos Outros” é um tributo à palavra escrita e aos que fazem uso dela, deixando claro que em terra de letrados ela faz diferença.