“A última noite” (25th Hour)
“A última noite” (25th Hour)
Edward Norton, Phillip Seymour Hoffman e Spike Lee. Hoje talvez lhe salte à vista, mas em 2003...seria o mesmo que, por um motivo qualquer, em 66 você visse no mesmo time um oftalmologista apelidado Tostão e um ponta direita chamado Jair. Sim, um tal Edson estaria com eles, mas esse o talento já era assimilado. E essa é uma analogia barata, que no entanto serve para saltar de novo à inteligência um trabalho primoroso executado em 2003.
Norton já tinha botado pra quebrar num filme em que ele interpretou um meliante com dupla personalidade. Phillip Seymour teria feito o caminho do eterno nerd, até que a providência lhe diria que ele botaria pra quebrar como vilão implacável, agente da CIA, padre, jogador compulsivo, escritor excêntrico e o que mais lhe apareça pela frente.
Em “A última noite” Spike definitivamente honrou a camisa 10.
Por que será que nos créditos de abertura ele assina como “a Spike Lee joint”? Joint tem mais de 30 significados de acordo com o Webster‘s de Antonio Houaiss. Pinçamos três para o leitor: união, espelunca, cigarro de canabis. Esse último é a única concessão que o diretor faz ao protagonista e “dope dealer” Norton, dizendo que o que ele vende é apenas erva para os grãfinos. Cascata. Logo nas primeiras cenas, quem vem bater `a sua porta pedindo um pouco de sei lá o que é tudo menos consumidor de canabis. Existe censura em Hollywood. Descontando essa observação, “A última noite” é um vigoroso ensaio sobre a perspectiva de quem vai enfrentar 7 anos de cadeia.
David Benioff, autor do livro e do roteiro não deixou por menos. Momento de se tirar mais uma vez o chapéu ao gênio do cineasta, que não se incomoda com a fala rancorosa do personagem, que por sua vez não poupa ninguém, nem mesmo os negros. O discurso que Norton faz no banheiro, olhando para o seu reflexo no espelho e falando a palavra “danem-se”, (na verdade outra palavra), enquanto Spike transforma em imagem o verbo bem articulado embora agressivo, de um cinema que vale à pena em qualquer tempo. Rosário Dawson, a namorada, Seymour Hoffman e Barry Pepper, os melhores amigos, Brian Cox, o pai. Todos girando em torno de Norton, que no dia seguinte irá para a cadeia por vender substâncias ilegais. Cada um deles tem uma visão particular do assunto e em nenhum momento fazem apologia as suas atividades ou passam a mão em sua cabeça.
Sexo, uma segunda chance na vida, a cidade de Nova Iorque, enriquecimento ilícito, brutalização nas cadeias, culpa e misericórdia são os temas que vão flutuando durante o desenrolar do enredo.
Sem falar nas bandeiras americanas presentes em ruas, carros e edifícios, uma delas chamuscada, a América e NY principalmente mostravam a ferida das Torres Gêmeas e o próprio Spike engendra um diálogo cujo pano de fundo são as ruínas das torres vistas do alto. Tudo parece uma maquete surreal, enquanto os melhores amigos de Norton concluem que a jaula equivale a uma sentença de morte.
Essa conclusão evidentemente vem do autor, David Benioff , e da ala roliudiana que se presta a denunciar sem maionese. Ponto para Norman Jewison e o seu “Justiça para todos”, onde ele coloca um juiz dizendo que cadeia é para sofrimento e ruína, não para reabilitação. Ponto para o jornal O Estado de São Paulo, que em 98 divulgou uma pesquisa dizendo que 100% dos crimes hediondos são cometidos por ex-presidiários.
Spike e companhia dissecam o tema. Os flash backs de “A última noite” são bem colocados e um deles deixa o espectador com a sensação de que ele perdeu alguma coisa, mas é só voltar o disco, já que cinema é entretenimento, percepção e tecnologia. Desde o princípio.